por Manuel Catarino
Como não me reconhecia qualidades para a elaboração de escritos profundos, escrevi umas quantas palavras, em dois ou três textos, sobre algumas injustiças que se me foram deparando na minha vivência em Mouriscas. Mas, como tenho visto uma abordagem quase quotidiana do “coitaditismo” nacional, que tudo justifica a bem das convergências ou pela incapacidade de encontrar alternativas, resolvi também dactilografar umas palavras à espera que alguém tenha a coragem de as publicar.
Grosso modo, ainda pequenote, aprendi que vítima era alguém que tinha sido surrado, espoliado dos seus animais ou outro qualquer bem, ou até mesmo a quem tinham apelidado com nomes mais difíceis de entrar no ouvido. Mais tarde, vítima passou a ser também aquele outro que tinha sido preso por delito de opinião e, já depois da Revolução dos Cravos, entraram no discurso as vítimas do fascismo e do comunismo.
Entretanto começam a surgir outros tipos de vítimas, criados por alguns veículos de opinião saídos de uma classe média auto-punitiva, assumindo todos os males do mundo, normalmente ligados às ciências do comportamento ou ao direito. Foram as vítimas de uma sociedade mal estruturada que promoveu a sua exclusão e que levou à existência de grupos de marginalizados e de minorias e também a um sem fim de categorias, que auto assumiram a diferença, o que lhes dava um jeitão e desculpava todas as tropelias. Esses coitadinhos construíam três barracas em três câmaras distintas para trespassar duas e ficar com uma. Efectuavam assaltos e vendiam droga como única possibilidade de sobreviverem e, quando era detectado um novo-riquismo ostensivo, era justificado com as carências da juventude ou uma compensação por séculos de colonização. O trabalho era uma forma moderna de escravatura ou de dependência de uma classe dominante.
Recentemente surgiu um extenso rol de novas categorias de vítimas (perdoem-me aqueles de que não falo, mas não é por esquecimento ou desprestígio por essas pessoas, mas tão só por gestão de espaço de escrita). É um primeiro-ministro que é vítima de uma série de coincidências que, também por coincidência, algumas são casos de polícia. É um ministro vítima das estatísticas de crime violento, que quis esconder para evitar o alarmismo e manter a paz pública, enquanto, qual ilusionista, procurava soluções na manga. São os abusadores do processo Casa Pia que são vítimas da investigação e de validarem os testemunhos de uns putos das barracas, testemunhos que um tribunal superior resolveu desacreditar para inocentar outras, também vítimas e com nome sonante. É uma alteração ao Código de Processo Penal que permitiu anular prova obtida legalmente em escutas telefónicas contra dirigentes desportivos e assim inocentados, vítimas de perseguição policial. São os bandidos, vítimas deste mesmo código, que os obriga a gastar rios de dinheiro em advogados, em recursos sucessivos até atingir o limite dos prazos. São os legisladores vítimas de um jornalismo, pago por forças maquiavélicas, que denunciam estas alterações à lei e as suas consequências, que esses políticos, coitadinhos, eram incapazes de prever. É o mesmo legislador vítima de lapso de escrita, que o leva legislar e aprovar um novo Código de Trabalho, onde todos os prevaricadores do regime legal anterior a esta lei são isentados e isto não parece, livre-nos Deus, mais uma benesse a uns amigos. São verdadeiramente vítimas, aqueles senhores que deixaram a banca de rastos, com os seus jogos na bolsa que inflacionava os valores do mercado, e que o governo resolveu apoiar nacionalizando os seus prejuízos, já que os ganhos estavam a bom recato num qualquer paraíso fiscal. São um sem número de políticos, vítimas de desemprego ou de escribas ressabiados, que, para sobreviverem, arranjam uns passatempos a ganhar uns milhares de euros por mês na banca do Estado, em empresas públicas ou privadas que, por coincidência, haviam ganho um concurso público. São essas mesmas empresas, argumentando ser vítimas de derrapagens de preços, que renegociam os valores das empreitadas conseguindo atingir o triplo do contrato inicial. São os magistrados vítimas da marcha lenta dos processos, que demoram anos a ir da estante do funcionário até à sala de audiências, quando não são vítimas de um qualquer autarca ou funcionário que não lhe acautelou parqueamento permanente e gratuito. São os empresários, vítimas da crise, que são obrigados a encerrar mais um negócio e despedir uns quantos pobretanas porque é preciso manter o status e mudar de Ferrari. São…
Chegados aqui, e abordado o conceito de vítima ao longo de quarenta anos, percebemos que as pessoas mudaram e as vítimas também. As mulheres e os homens destas Mouriscas espalhadas pelo país, uma boa parte de idosos, desempregados ou no limiar da sobrevivência, alguns que já foram classe média, as tais vítimas de há quarenta anos, que pouco mais exigem que os direitos a um dia a dia digno e à igualdade de oportunidades, continuam a sofrer na pele os desmandos destas outras vítimas. Mas, o que confrange mesmo, é a não rejeição, resignação ou mesmo aceitação destes desmandos e perceber que a vitimação os justifica. Os espertalhões ocuparam os melhores lugares neste comboio de vítimas e de milhões, mas ainda há alguns lugares vagos e, por este andar e tanta justificação, juntam-lhe mais umas carruagens para os amigos.
Aos que comigo privam, por favor, não me chamem conservador, classissista ou xenófobo e muito menos não me dêem porrada, porque eu não quero ser nenhuma das vítimas.