ALBERTO M. G. MENDES (Juiz Desembargador eleito Provedor Municipal)
A figura do “ombudsman” nasceu na Suécia mas, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, mercê da complexidade da Administração e da insuficiência do controlo pelos Tribunais da actividade administrativa, iniciou-se a introdução desta figura noutros países onde surge com contornos diferenciados e com designações várias: o “parliamentary comissioner”, o “médiateur”, o “defensor del pueblo” e o nosso “provedor
de justiça”.
Não há, pois, um modelo único de “ombudsman” mas todos se caracterizam pela independência, (que decorre do facto de ser escolhido por um processo que o coloca fora da interferência da entidade ou entidades em cujo âmbito desenvolve a sua actividade, o que se consegue através da escolha por um processo eleitoral promovido no seio do órgão ao qual são atribuídas funções de controlo, como sucede com os parlamentos) pela imparcialidade, (que se traduz num estatuto de equidistância relativamente aos interesses que analisa) pela acessibilidade, (não é necessária, por exemplo, a constituição de advogado para provocar a sua intervenção) pela informalidade, (não há prazos rígidos, petições formais, recursos ... ) pela gratuitidade e pela falta de poderes decisórios, isto é, não tem poderes de revogar ou alterar decisões administrativas, mas apenas poderes de recomendação aos órgãos que “fiscaliza” com vista a prevenir e reparar as falhas detectadas.
Os modelos são diferentes de país para país, designadamente no modo de designação (pelos parlamentos, como em Portugal, pela coroa, como na Grã-Bretanha ou pelo presidente da república, como no caso francês) e nas competências em razão do território, conforme a organização de cada estado; há ombudsmen nacionais, regionais e municipais e mesmo, no caso do Provedor Europeu, um ombudsman supra nacional.
Em Espanha, por exemplo, para além do “defensor del pueblo” existem ombudsmen regionais na Catalunha, no País Basco, na Galiza... e municipais e, na Suíça, praticamente só existem os ombudsmen municipais.
Em Portugal constitucionalizou-se a figura do Provedor de Justiça, o qual é eleito pela Assembleia da República por maioria qualificada.
A C.R.P. instituiu um Provedor com as apontadas características e ainda com as de unicidade (só prevê um) e de multifuncionalidade – é um generalista.
Vem-se discutindo entre nós se este órgão independente deve ser único ou se, como sucede noutros países, podem coexistir provedores com competência especializada ou sectorial.
Podemos afoitamente dizer que o apontado artº 23º (a norma nele contida) não veda tal criação.
O que o comando constitucional estabelece é que o Provedor de Justiça nele previsto e eleito na Assembleia da República é um só, com poderes de intervenção alargados a toda a actividade administrativa pública.
Isto significa, em consequência, que é vedado ao legislador ordinário reduzir aquele âmbito de intervenção ou os poderes do Provedor de Justiça, “rectius”, que a criação por qualquer forma de provedores sectoriais, por exemplo os provedores municipais, não podem reduzir tais poderes ou competência para intervir.
Ou seja, não nos parece correcto sustentar, como já vimos fazer, que há neste domínio uma “reserva de constituição”, (que conduziria à conclusão de uma proibição absoluta de, por lei ordinária, instituir qualquer outro provedor para além do já criado) defendemos antes que a discussão deve centrar-se noutro âmbito, concretamente na ponderação dos bens jurídicos a tutelar pelos provedores sectoriais que se visem criar.
Colocada a questão desta forma, pode dizer-se que tal criação deverá sempre ser precedida de um juízo sobre a necessidade de tutela específica do sector em causa, mais precisamente, da ponderação dos ganhos em contraponto com os prejuízos para o sistema globalmente considerado, isto porque a Constituição não admite tutelas deficientes dos direitos.
Tal significa, pois, que será mesmo inconstitucional a criação de provedores sectoriais quando não se demonstre a efectiva necessidade da sua criação (no respeito pelo dever de boa administração) ou a sua incompatibilidade com o princípio da melhor (da máxima) defesa e protecção dos direitos dos cidadãos. Isto é, se os benefícios trazidos à protecção (máxima) dos direitos não se mostrem justificados.
A criação em Cascais da figura do Provedor Municipal tem a sua génese no programa pré-eleitoral do actual Presidente da Câmara, correspondendo, como parece evidente, a uma concepção de maior transparência e mais alargado (auto) controlo da actividade administrativa local, concepção depois acolhida pelo órgão executivo e, maioritariamente, pelo órgão deliberativo do município.
Ao decidirem a instituição deste órgão quer o Executivo (que propõe) quer a Assembleia Municipal (que elege) ponderaram na efectiva vantagem da sua criação, concluindo, naturalmente, que tal representaria um acréscimo de garantias para os cidadãos da circunscrição municipal.
Considerou-se, por certo, que a tutela dos direitos dos munícipes sairia reforçada, isto é, que a existência de um órgão desta natureza, mais próximo dos cidadãos, representa um ganho sem bulir com o sistema instituído, “rectius”, com o órgão constitucional Provedor de Justiça.
Adoptou-se, pois, a concepção de que o ombudsman que estiver mais perto do cidadão é o mais eficaz.
A legitimidade da Assembleia Municipal para criar esta entidade parece-me inquestionável na medida em que é um órgão colegial deliberativo eleito por sufrágio universal, directo e secreto dos cidadãos recenseados na área da autarquia e que tem competência, designadamente, para acompanhar e fiscalizar a actividade da câmara municipal (órgãos e serviços municipais) dos serviços municipalizados, das fundações e empresas municipais.
Ao deliberar a criação do Provedor Municipal a Assembleia instituiu uma entidade autónoma, independente dela e que, com o seu “aval” democrático, tem por função garantir a defesa e a prossecução dos direitos e interesses legítimos daqueles (cidadãos) perante os órgãos, serviços municipais, serviços municipalizados, empresas e fundações municipais.
Não cabe aqui discorrer sobre a natureza deste órgão, (saber se se trata de uma entidade administrativa independente ou um instrumento do controlo da Assembleia Municipal que o elege ou antes um órgão independente, “sui generis”, de controlo da actividade administrativa...) mas apenas salientar que, de acordo com o respectivo estatuto, aprovado pela Assembleia Municipal, o Provedor exerce a sua actividade com autonomia e imparcialidade face aos órgãos municipais.
Trata-se, assim, de um órgão unipessoal, autónomo, imparcial, desprovido de poderes injuntivos nas suas decisões e com competência “fiscalizadora” circunscrita ao município.
Revelando a preocupação de colocar o provedor numa situação de absoluta independência em relação aos órgãos que “fiscaliza”, o estatuto também impõe não só que o provedor deve ser um cidadão que goze de reconhecida reputação de integridade moral e cívica como ainda, que ao provedor não é aceitável o exercício de actividade partidária e tem de ser eleito com uma maioria qualificada de dois terços dos membros da Assembleia Municipal.
Trata-se de uma experiência pioneira o que desde logo levanta a questão da sua criação noutros municípios.
É, por isso, razoável perguntar se é justificável a sua criação nos 308 municípios do País. Perante as considerações acima expendidas a resposta é
óbvia.
Só nos municípios com apreciável dimensão, onde ocorram ou seja previsível ocorrerem muitas queixas ou reclamações dos particulares perante os órgãos, serviços municipais, serviços municipalizados, empresas e fundações municipais, é justificável a sua criação.
Isto significa, pois, que só se a Câmara e a Assembleia Municipal concluírem pela efectiva necessidade da criação do ombudsman, no respeito pelo aludido dever de boa administração e numa óptica de aumento de garantias de defesa e protecção dos direitos dos cidadãos, a sua criação pode ser implementada.
Para finalizar, direi que a sua proximidade do cidadão (as queixas e reclamações podem ser apresentadas por escrito ou mesmo oralmente) e
dos órgãos sindicáveis, permite-lhe uma actuação mais rápida, esclarecida, informal e eficaz.
O problema da sobreposição parcial de competências com o Provedor de Justiça é, do meu ponto de vista, apenas aparente.
Este pode sempre intervir directamente, podendo eventualmente o ombudsman municipal servir de veículo, ficando afastado ou retirando-se do “processo”, cabendo-lhe então a formulação da recomendação aos órgãos municipais.
Neste, como noutros domínios, é no respeito pelas competências e com bom senso que eventuais “conflitos” serão ultrapassados, sendo certo que só os interesses do cidadão devem relevar.
De resto, parece-me inquestionável, só a este cabe escolher o caminho que, no seu entendimento, mais facilmente lhe permite resolver o problema que o aflige, seja com recurso aos tribunais ou a outros meios extrajudiciais mais ou menos informais de resolução de conflitos.