A HIPOCRISIA DA NECESSIDADE
Vasco Pulido Valente - Público de 2/9/12
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O império português de África foi, desde o princípio, um monumento de incúria, de miséria, de exploração e guerra. Nada que nos permitisse o mais leve orgulho e de que não deveríamos falar, sem alguma vergonha e humildade. Mas logo no "25 de Abril" se viu que nada disso ia suceder. O MFA e Melo Antunes, muito em particular, tentaram esconder o abandono e a derrota com a extravagante teoria da "descolonização exemplar" e a megalomania (já esquecida) da "placa giratória" entre o nosso admirável "socialismo" do 1.º e o 3.º mundo. O que de certa maneira se compreende: um país pobre como Portugal não tinha dinheiro para investir em Angola ou em Moçambique, e nem sequer gente que lá se dispusesse a viver (em 1945, não havia mais de uns milhares de portugueses na África inteira).
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O que admira é a persistência dos mitos do Império quase 40 anos depois do "25 de Abril", na cabeça de pessoas que se imaginariam mais sensatas. Bastou a hipótese de se fechar a RTP para vir ao de cima a ideologia de um nacionalismo arcaico e absurdo que se julgava morto e mais do que enterrado. De repente, e sem aviso, voltou a conversa da nossa "missão universal" e algumas catedráticas criaturas, falando de "intangíveis valores" da Pátria e do papel do Estado, nomeadamente da RTP, na sua conservação e defesa. Sob a pele do cidadão ordeiro, existe ainda um admirador do Império e da sua "glória", que se imagina designado para um grande destino e a quem não bastam os triunfos vicários do futebol ou a presença, aliás melancólica, do sr. Barroso na "Europa".
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Este surto de loucura mansa está evidentemente ligado à crise económica e à crescente importância de Angola (e não de Moçambique ou da Guiné) na economia indígena. O Governo tenta arranjar contratos para empresas que faliriam sem eles; pede com humildade o investimento que mais ninguém lhe dá; e um número crescente de portugueses começa a emigrar para África, como raramente emigrou no tempo do Império, tanto mais que hoje uma certa cultura popular, e até muitas vezes técnica, facilita as coisas. Tudo isto se compreende e se agradece. O que não se compreende, nem se agradece, é a retórica do "engrandecimento de Portugal", com que a hipocrisia doméstica resolveu cobrir uma situação de necessidade e falência. Portugal não precisa de palavras. Precisa de realismo e modéstia.