Vasco Puliddo Valente - Público de 29-3-2013
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Com o arzinho de vítima e o arzinho de brutalidade, que os portugueses conhecem, Sócrates foi anteontem à televisão. Veio muito pior de Paris: sem escrúpulos de inventar o que lhe convém e com um autoritarismo e um azedume que roçam o patológico. Tratou os jornalistas que o entrevistaram com a maior má-criação e às 140.000 pessoas que o criticaram ou não o apoiaram na Internet chamou "essa gente", com aberto desprezo e, pior do que isso, com a ameaça velada de quem tenciona, tarde ou cedo, ajustar contas. Parece que se convenceu que depois do pequeno incidente de 2011 vinha outra vez tomar conta do país e que ninguém se atreveria a protestar. Só precisava de contar uma história, a verdadeira história, dos seus padecimento e martírio, para que Portugal inteiro caísse aos pés dele em adoração e penitência.
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E que história é essa? Primeiro, que ele governou justa e gloriosamente até 2007. Segundo, que a nossa desgraçada dívida não passa de um efeito inevitável da crise internacional de 2007/8. Terceiro, que se o PSD tivesse aceitado o PEC IV em 2011, não seria preciso qualquer resgate e, logicamente, ninguém se lembraria de mandar para cá a odiosa troika. Quarto, ele, Sócrates, lutara sempre contra o resgate e a troika e hoje ninguém o pode responsabilizar directa ou indirectamente pelo assunto. De resto, e tirando a perniciosa influência do estrangeiro, a política financeira do Governo dele é um exemplo de prudência, de rigor e de inovação. Como também a política económica, que hoje em parte pagamos pelo triplo do preço que ela realmente custou. Mas Sócrates não se interessa por pormenores.
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O que lhe interessa é deixar bem à vista os miseráveis culpados da sua queda e, com ela, a de Portugal. De Pedro Passos Coelho e o PSD quase nem vale a pena falar: queriam o poder mesmo à custa da nossa miséria e votaram o PEC IV por puros motivos partidários. Sozinhos talvez não conseguissem lá chegar. Mas por detrás deles estava a mão do "desleal" Cavaco, que lhes preparou o caminho e empurrou para a frente no momento certo. Cavaco era (e continua a ser) o guia e o chefe, o PSD e o CDS os fantoches que ele usou para os seus próprios fins (que fins, Sócrates não explica). De qualquer maneira, segundo esta versão da história, a direita é o mal e a esquerda é o bem; Cavaco é um enviado das trevas e Sócrates (agora regressado do exílio, limpo de pecado) é o anjo vingador. Se os portugueses que assistiram à entrevista da criatura acreditaram nela, Deus nos salve e depressa.