José Manuel Fernandes - Público de 31-1-2014
(...) Pessoalmente, detesto as praxes. No meu tempo não havia praxes. O que era bom era que os estudantes formassem grupos de teatro ou, melhor ainda, fossem activistas políticos – afinal, era assim no meu tempo. (...)
O meu ponto é outro e é simples: se queremos, e até devemos, discutir as praxes, então convém que também meditemos sobre o ambiente cultural e moral em que medram os seus excessos condenáveis. O problema não é social, como alguns sugeriram, nem tem nada que ver com a actual crise, pois as praxes até renasceram em Portugal numa época de prosperidade e optimismo económico. O problema é mais depressa moral se pensarmos que alguns dos “excessos” que agora nos horrorizam não são tão distintos como isso de algumas “normalidades” que nos entram casa adentro todos os dias. (...)
O que nos indigna, e com razão, não são os acidentes – se é que o que se passou no Meco é resultado de um acidente facilitado por um ritual qualquer. O que nos indigna é a alarvidade, o sadismo, o sexismo, a porcaria, a violência. Só é pena que não indignemos também por a alarvidade se ter tornado cultura dominante e aceite, por encher a programação das televisões, por ganhar às vezes estatuto de arte – já vimos tudo, e já vimos como esse tudo, mesmo o que é deliberadamente ofensivo, seja insusceptível de crítica se provier de um “artista” ou de um “performer”. É a mesma alarvidade que serve para tornar “engraçada” alguma publicidade ou para dar o toque de “irreverência” a tantas canções e que apenas nos arranca um sorriso condescendente. As bebedeiras das “queimas” também não nasceram de geração espontânea, têm antecedentes da cultura dos shotsque são servidos sem limites nem regras nos bares adolescentes de todo o país.
Vivemos numa sociedade onde a boa educação é vista como uma coisa antiquada, onde a ideia de cavalheirismo é vilipendiada como sendo reaccionária, onde o insulto grotesco é mais depressa visto como um exercício de liberdade do que como um abuso, onde a exibição pública das misérias da natureza humana garante audiências no prime-time das televisões, onde se aceita essa estranha “normalidade” de as claques dos clubes só se deslocarem rodeadas por polícias, onde se perdeu a noção de que há uma diferença entre vícios e virtudes e reina um relativismo que faz com que tudo se torne equivalente.
O país que se indigna com o sadismo dos duxes veteranoruns é o mesmo país que fez de um romance de contornos sadomasoquistas (ao que me dizem, pois não o li nem tenciono lê-lo) o maior êxito de vendas dos últimos anos. O país político que se exalta a pedir castigo para os jovens universitários é o mesmo que deixou degradar a linguagem política para um nível em que o insulto se tornou corriqueiro e, às vezes, bem visto e aplaudido. O mesmo sucede no interior de muitas universidades, onde há quem não respeite o direito às opiniões diferentes e passe ao ataque pessoal com armas estilísticas que em nada se diferenciam do esterco utilizado nalgumas praxes (ainda na passada sexta-feira isso aconteceu nas páginas deste jornal).
Há aqueles que acham que uma sociedade se molda a talhe de sucessivas investidas legislativas, e por isso já por aí andam a pedir leis e regulamentos. Eu acredito mais nas pessoas e nos combates culturais e morais. Os excessos que existem são crime e como crimes devem ser tratados. Mas o que nas praxes é reflexo da rasquice dominante e da amoralidade pós-moderna não se ultrapassa a não ser começando por dizer que não toleramos a degradação dos valores da civilidade, uma degradação que nos toca todos os dias. Quem é que, por exemplo, ainda se levanta num transporte público para dar o lugar a uma pessoa idosa? É que isso custa um pouco mais do que o único acto de boa educação que parece resistir entre os portugueses, o de dar aos outros a passagem à entrada do elevador...
Quem pensa que se pode viver bem em sociedade sem valores e sem referências morais, à vontade de cada um, sempre a pensar no prazer imediato e irrestrito, só pode esperar uma sociedade reduzida ao código das praxes. É isso que gostava que também estivéssemos a discutir.