Partidocracia e carreirismo
Elísio Estanque - Público de 16-8-2014
(...) Sabemos bem que todas as estruturas organizativas, à medida que crescem, caem em algum grau de perversão burocrática. Como mostrou Max Weber, os burocratas furtam a toda a crítica os seus conhecimentos e actividades e, na sua propensão ao secretismo, a burocracia perde eficácia à medida que se estende, cedendo o lugar a um “círculo vicioso de ritualismo”, que alimenta o poder paralelo das oligarquias. Os grandes partidos abdicaram há muito do debate democrático interno, inicialmente a pretexto do que alguns consideraram a “morte das ideologias”, em favor de poderes e interesses ocultos. Mesmo na preparação dos seus congressos prevalece, como é público e notório, a conhecida propensão para a “contagem de espingardas”; ou seja, trata-se apenas de cada adversário olear a sua “máquina”, angariar apoios financeiros e iniciar a “contagem” de quem está com quem e ver como reforçar as hostes de cada um dos “exércitos”. (...)
Na lógica dos “apparatchiks” de serviço instalou-se o princípio da “partidite”, no qual impera a mesquinhez e o oportunismo. (...) O jogo de simulacros e o ritualismo que estes sistemas encerram condensam uma mistura de burocracia com carreirismo. É uma cultura organizacional própria de organizações que, além de oligárquicas, encerram uma dinâmica centrípeta, propensa ao autofechamento e à negação da realidade exterior que a envolve (neste caso, a sociedade e as pulsões colectivas que dela emanam). (...)
Os partidos de poder tendem a esquecer os velhos valores e a abandonar a própria ideologia de raiz (quando muito invocam-na como mera retórica). Assim, em vez do debate de ideias – tão urgente na época de indefinições e perplexidades em que vivemos –, o modo de estar do militante comum na vida partidária centra-se no detalhe e obedece a um plano de vida onde as necessidades imediatas, a garantia do emprego do familiar, a dependência do favor do respetivo tutor, etc., aconselham a ser fiel ao “alinhamento” em que se colocou. Em geral, a carreira do militante-base é precedida da do “padrinho”, a quem o “aprendiz de político” (como o burocrata) se dedica afanosamente e para quem já terá dado amplas provas, acumulando “fichas” e sindicatos de voto, isto é, alimentando as dependências e “lealdades” que o seu cacique-mor foi construindo, a custo, para chegar onde chegou.
Neste sentido, os “profissionais” do aparelhismo que proliferam nos grandes partidos (o PS e o PSD são semelhantes), os chamados “carregadores de piano”, vêm fazendo carreira e aprimorando os seus dotes estalinistas (nalguns casos iniciados noutras “escolas”), por vezes adornando o seu status com o verniz de uma qualquer licenciatura feita à pressa. O cinismo e a habilidade com os jogos de poder vão-se tornando mais sofisticados à medida que se desfazem e refazem inimizades e alianças, se traficam influências e se acede a posições de autoridade na estrutura. Podem depois surgir as cartadas maiores, nas quais o poder se estende a outra escala, em especial quando o partido ascende ao poder. Aí, entra-se numa outra dimensão, na qual o mundo dos negócios (por vezes legítimos e legais…) está mais à mão e os privilégios deixam de se medir pelo número de “fichas” (ou de votos) conseguidas. Ler Maquiavel seria uma redundância. A prática ultrapassou a teoria.