Francisco Assis - Público de 27-11-2014
Há uns anos atrás, Jacques Julliard, ensaísta e historiador, figura proeminente da esquerda francesa, colocava numa crónica publicada no Nouvelle Observateur, onde então escrevia, uma questão de relevante actualidade: estará a esquerda europeia disponível para um entendimento de fundo com a Igreja Católica? (...)
O cristianismo, a meu ver, transporta consigo, quase desde as suas origens, uma contradição dificilmente resolúvel. Por um lado, é uma religião profundamente humanista, assente na ideia do amor; por outro, possui uma componente dogmática facilmente impulsionadora de um fanatismo proselitista e perigoso. Jean-François Kahn acaba, aliás, de publicar um curioso livro em que intenta um verdadeiro processo às religiões monoteístas. Por oposição ao politeísmo clássico, repleto de deuses desregrados − e por isso profundamente humanos −, as grandes religiões monoteístas trazem consigo a marca da mesma cegueira ideológica que originou todas as formas de autoritarismo dogmático que se manifestaram, sob as mais diversas formas, ao longo da história.
Ao ouvir o Papa Francisco há dois dias, no Parlamento Europeu, todas estas questões me sobrevieram ao espírito. Há desde logo algo de extraordinário nesta presença do líder espiritual do mundo católico numa assembleia parlamentar representativa do pluralismo doutrinário e político constitutivo de todo o espaço público europeu. Quantos séculos, quantas disputas, quantos actos de coragem para que tal fosse hoje viável. Se é verdade que não é possível pensar o horizonte civilizacional europeu sem o contributo do pensamento cristão, também é um facto que a modernidade europeia se construiu em oposição às posições assumidas oficialmente pela Igreja de Roma. Não esqueçamos que esta só tardiamente aceitou a ciência moderna, o livre pensamento e as formas de organização política democrático-liberais. Também é certo que foi, nalgumas circunstâncias, vítima de uma perseguição anti-religiosa alicerçada num entendimento primário do primado da razão humana. Felizmente, tudo isso, no contexto político europeu, parece ter ficado para trás.
O Papa proferiu perante os parlamentares um belo e incisivo discurso que, suscitando, no essencial, uma apreciação consensualmente favorável, não deve deixar de ser objecto de uma apreciação crítica. Voltemos ao ponto inicial deste texto, a expectativa formulada por Julliard de um novo entendimento entre a esquerda europeia e a Igreja Católica. Hoje percebe-se bem o que antevia o autor francês: a coincidência na crítica a um capitalismo desumanizante, baseado numa representação antropológica primária e pouco preocupada com a salvaguarda da dignidade do ser humano. (...) O que mudou, então, para que o novo diálogo passasse a ser possível? Duas coisas fundamentais: por um lado, como ficou bem patente na intervenção do Papa em Estrasburgo, a Igreja abriu-se a uma outra compreensão do mundo contemporâneo; por outro lado, grande parte da esquerda deixou de ver no fenómeno religioso uma simples manifestação da alienação humana. A partir daí tornou-se possível uma convergência de fundo em torno de uma concepção do homem como um ser simultaneamente individual e social, portador de direitos e de deveres, merecedor de uma consideração especial enquanto sujeito político e moral, insusceptível de redução ao estatuto de mero objecto. Ora, um capitalismo sem regras, desprovido de mecanismos de correcção democrática, dominado pelo impulso faustiano de um desenvolvimento técnico alheio a qualquer preocupação ética, acabará sempre por questionar e até mesmo aviltar o princípio da superior dignidade da pessoa humana. Nisso, a esquerda, fiel à sua luta histórica pela promoção dos princípios democráticos, não pode deixar de reconhecer-se no discurso deste Papa. É verdade que ele o faz apelando permanentemente, como não poderia deixar de ser, para a ideia da transcendência; mas não apelará também a esquerda, no seu devir histórico, para uma espécie de transcendência imanente, por mais paradoxal que isto possa parecer, quando se constitui por referência a um conjunto de valores e princípios de escassa concretização histórica? (...) Ao ouvir o Papa, compreende-se bem a razão que assistia a Jacques Julliard. (...)