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Francisco Assis - Público de 5-2-2015
Uma estranha mistura de marxismo analítico, populismo retórico e neokeynesianismo económico parece estar a tomar conta de uma parte significativa da esquerda europeia. A vitória do Syriza suscitou arrebatamentos inesperados em sectores e personalidades que extravasam largamente o espaço político tradicionalmente identificado com a esquerda mais extremista.
Não foram, aliás, poucas as vozes que enalteceram tal sucesso antevendo-o como a nova encarnação política da social-democracia do século XXI. Quase trinta anos depois da derrocada do muro de Berlim e da desagregação do mundo soviético, a própria ideia comunista parece suscitar um renovado interesse aos olhos de quantos vêem na desigualdade o grande mal contemporâneo. Os teóricos e os políticos que se inscrevem numa linha de orientação marcadamente antiliberal são recebidos por públicos ansiosos como verdadeiras rock stars investidas de capacidades quase demiúrgicas.
Por seu turno, a esquerda que recusa fazer do anticapitalismo um programa, que procura permanecer fiel a uma herança liberal e que rejeita a adesão a um discurso tendencialmente messiânico é violentamente atacada e colocada sob suspeita de traição doutrinária. O despudor com que se reescreve a história recente remete mesmo para o plano da falsificação pura e simples. Sintomaticamente, assistimos à revalorização de pensadores que declaradamente contestam a supremacia da democracia representativa e apelam à construção de modelos de participação política não muito distantes do velho vanguardismo bolchevique. Um filósofo de inegável talento, Alan Badiou, reclama explicitamente a adesão a uma nova utopia comunista, opondo desde logo Rousseau a Voltaire com o que isso significa de desvalorização de uma tradição individualista, tão cara à esquerda moderada da Europa. (...)
Porque chegámos até aqui? Uma parte da resposta parece-me óbvia: as democracias pressupõem um determinado nível de coesão social, já que se inspiram no valor referencial da igualdade. Quando seja como resultado de avanços tecnológicos produtores de desintegração social, seja como consequência de um processo de globalização gerador de alguma anomia, se degradam os vínculos cívicos e se acentuam as desigualdades de condições e de estatutos, os extremismos propendem a crescer. Podem adquirir a forma conservadora de comunitarismos tribais ou nacionalistas, ou a expressão de um messianismo igualitarista de perfil colectivista. Em qualquer dos casos verifica-se o sacrifício daquilo que poderemos designar como a civilização liberal.
O que já não parece tão óbvio é o outro lado possível da resposta a esta questão: o mundo ocidental parece dominado pelo medo, pela recusa obstinada do risco, pela adesão infantil a uma representação mágica da realidade. Curiosamente, para isso contribuiu a associação entre um capitalismo desregulado, uma muito narcisista noção de emancipação e uma presença do ente público um pouco desresponsabilizante. O resultado patológico desta mistura está bem à vista: entre o indivíduo e a multidão parece só haver lugar para o espectáculo da denúncia, para a declamação de princípios simplistas e para a reclamação de direitos e interesses insuficientemente preocupados com o primado do bem público. Não é de estranhar que floresçam soluções em que o simplismo conceptual é directamente proporcional à capacidade de sedução emotiva.
Vejamos, a este propósito, a forma como se processou a recepção da vitória do Syriza entre nós. Se nuns casos se valorizou a derrota do projecto europeu, noutros pretendeu-se ler a demonstração da falência das economias sociais de mercado, e noutros ainda descortinou-se o alvorecer de uma esperança pós-liberal; no limite, prognosticou-se a antecâmara da instauração de um modelo radicalmente diferente de organização política, económica e social. (...)
Na verdade, seria trágico para o país que uma parte do Partido Socialista se afastasse de uma linha até aqui historicamente prevalecente, inscrita numa tradição de compromisso europeu, quer no plano doutrinário, quer no âmbito político. Essa linha não está morta e tem dado sinais de inequívoca vitalidade nos últimos meses. Esses sinais traduziram-se em importantes alterações de comportamento das principais instituições europeias, com reflexos positivos que se começam a perceber. Aqueles que descrêem das virtualidades deste caminho, e que preconizam a teoria do confronto a nível europeu, partem de uma avaliação errada da natureza política da Europa e enfermam de uma certa confusão doutrinária que nada auspicia de bom.
Perante tal situação, um só apelo deve ser feito: não sucumbamos à tentação do imediato e do efémero; permaneçamos fiéis a uma visão mais estruturada e de mais longo prazo da nossa vida colectiva. O tempo talvez esteja propício a excitações, mas é dever dos principais responsáveis políticos não as confundir com a solidez de convicções.
Santana-Maia Leonardo - Nova Aliança
Imaginemos dois polícias responsáveis pelo patrulhamento de duas ruas da cidade. O primeiro polícia, porque faz um patrulhamento de proximidade e com visibilidade, impede que se cometam infracções na sua rua; o segundo polícia, porque não exerce as suas funções com a mesma diligência, tem sempre a sua rua cheia de carros mal estacionados, em cima dos passeios e em segunda fila.
Resumindo: o primeiro polícia chega ao fim do mês sem passar uma única "multa"; por sua vez, o segundo polícia passa "multas" com fartura.
Qual dos dois vos parece ser o melhor polícia? Pois é, mas, para o nosso Governo, as contra-ordenações não se destinam a prevenir as infracções mas a sacar o máximo dinheiro aos contribuintes. Por isso, o bom polícia é, para o Governo, o que consegue passar "multas" e não o que consegue evitar as infracções.
A frase é de John Rawls ("Sem cooperação do capital e do trabalho, nada seria produzido e, por isso, nada haveria para distribuir.") e a foto de Cascais é da autoria de José Ferreira.
As fotos da coluna lateral são da autoria de: Paula Costa Vieira (Vila Franca de Xira), Mário Castro (Douro) e António Pereira (Chaves).
António Guerreiro - Público de 12-12-2014
O conceito de género, tal como ele é usado pelos gender studies, para além da sua fecundidade teórica, obrigou a olhar de outra maneira algumas questões fixadas em velhos axiomas. (...) No entanto, há alturas em que os conceitos vão para além dos seus próprios fins e se viram contra si próprios. A noção de género, usada para definir a modalidade e o objecto de uma violência, dita “violência de género”, serve muito mal o que pretende designar. Parece, aliás, um conceito inventado para dar uma aparência de igualdade e simetria ao que nada tem de igual e de simétrico: uma grande parte desta violência é exercida pelos homens sobre as mulheres; o contrário é uma percentagem ínfima. Do ponto de vista pragmático, não há aqui vantagem nenhuma em inflacionar a palavra “género” — uma abstracção, certamente importante para um modelo heurístico — e evitar as palavras “mulher” e “homem”. É quase grotesca esta preciosidade teórica, quando transposta para a linguagem corrente, quando o que está em causa é precisamente uma situação de dominação e de violência que não reconhece os termos desse novo discurso e jamais falará a mesma linguagem. O conceito de género serve para desfazer identidades e superar o modo essencialista de ver a diferença masculino/feminino. Por isso, ele serviu para libertar a mulher da “condição feminina”. Mas o tempo da teoria e da ciência não é o tempo da ordem pragmática, histórico-social.
Situando-nos ainda nos mesmos domínios, um outro termo que tem sido sujeito a um uso inflacionado, e por isso nefasto, é “homofobia”. A palavra “fobia” tem um sentido preciso, muito forte, e convinha não a banalizar. Um grande parte das verdadeiras vítimas de homofobia nem conhece a palavra ou, pelo menos, está impedida de a pronunciar. A maior violência, neste domínio, é uma violência simbólica que as vítimas acabam por interiorizar e exercer contra si próprias. A homofobia engendra a autofobia, e é aí que as suas marcas mais profundas são sentidas. (...) Fazer da homofobia uma pequena mitologia (no sentido das “mitologias” da sociedade de consumo, tal como Roland Barthes as definiu e analisou) é um insulto lançado aos que a sofrem na realidade e não podem dar-se ao luxo de dandismos vocabulares e semânticos. A linguagem está cheia de armadilhas e, com ela, é preciso estabelecer um compromisso ético válido para todas as ocasiões.
Rui Ramos - Observador de 29-12-2014
A conversão do deputado Carlos Abreu Amorim tem justificado algumas lições sobre o liberalismo e a sua oportunidade. Como acontece com todos os outros “ismos”, o liberalismo — no singular — só existe em teoria. Na história, nunca houve um liberalismo, mas vários “liberalismos”, como Oliveira Martins notou no “Portugal Contemporâneo”, que continua a ser o grande livro sobre a experiência liberal portuguesa do século XIX. (...)
Em teoria, podemos chamar liberalismo à preferência por um Estado e uma sociedade fundados na independência individual do cidadão, o que pressupõe um poder limitado e o reconhecimento de uma esfera privada. (...)
Para que serve o liberalismo teórico? A mim serve-me, por exemplo, para perceber que o chamado Estado social pode ser um meio de dar oportunidades a muita gente, mas é também uma via para reduzir populações inteiras à condição de utentes controlados por burocracias anónimas. Mas há coisas para que não preciso para nada do meu liberalismo. Por exemplo, para compreender que os políticos correm um risco demasiado grande ao assumir compromissos que não podem pagar, que a defesa do crédito é hoje a melhor maneira de evitar uma ruptura social, ou que convém fazer crescer a riqueza, e que neste momento os mercados abertos da globalização são a via mais adequada para esse fim. Para perceber isto, não preciso do liberalismo.
No entanto, é este o sentido que liberalismo tem no debate político português. Chama-se “liberalismo” à urgência de equilibrar as contas do Estado ou à necessidade de, numa época de endividamento e desemprego, tornar a economia competitiva internacionalmente — como se só aos “liberais” pudessem ocorrer essas opções. É por isso que na Europa, todos os governantes são acusados de “liberalismo”, estejam à esquerda ou à direita: Passos ou Rajoy, mas também Renzi ou Hollande. Não interessa o que cada um deles é ou diz que é: basta que diminuam um subsídio ou façam uma reforma, mesmo contrafeitos, para passarem a ser “liberais”.
Este uso indiscriminado de liberalismo não corresponde, como é óbvio, a um diagnóstico, mas a um embuste: as oposições tratam assim de impor uma identidade ideológica às operações de equilíbrio do Estado social e de estímulo da economia, de modo a fazer crer que são apenas um mero capricho doutrinário, sem qualquer outra razão de ser. Somos assim convidados a acreditar que o mundo é como é apenas porque os “liberais” mandam, e que portanto bastará afastar os “liberais” para que outro mundo — de abundância sem custos para ninguém — seja imediatamente possível. Não, isto não é um debate. É apenas demagogia e desonestidade.
João Carlos Espada - Público de 2-2-2015
(...) Em democracia, nós lidamos com o desacordo dando-lhe espaço para se exprimir e oportunidade para a concorrência entre propostas moderadas rivais. Isso mesmo devia ter sido aplicado ao super-arriscado projecto de engenharia social chamado “moeda única europeia”. (Em meu entender, o próprio nome é discutível: porquê moeda única e não apenas moeda comum, em pacífica concorrência com as moedas nacionais?).
Em vez de “trivializar” o euro e de o deixar às livres flutuações das preferências parlamentares nacionais, os arquitectos do euro preferiram elevá-lo a um nível quase constitucional. O resultado não era difícil de prever (e de temer): a gradual emergência de partidos radicais e anti-sistema que iriam explorar o vazio artificialmente criado pela quase constitucionalização do euro.
Podemos ainda travar esta radicalização desnecessária? Espero que sim. Mas o primeiro passo consiste em perceber que as origens da radicalização estiveram na redução do leque de escolhas moderadas em oferta. Ainda vamos a tempo de aumentar esse leque.
Gonçalo Portocarrera de Almada - Observador de 31-1-2015
(...) Qualquer pessoa tem o direito de crer, ou não crer, no que quiser, mas ninguém tem o direito de atentar contra a vida ou a liberdade de seres humanos inocentes, muito menos em nome de Deus.
Como também recorda o Catecismo, Jesus foi injustamente condenado à morte… por blasfémia! (CIC, nº 574). É confrangedor e paradoxal que, ao longo da história bimilenar da Igreja, alguns cristãos tenham matado outras pessoas, em nome de Cristo, pelo mesmo crime que Ele, há dois mil anos, foi iniquamente morto!
Impor, pela força, uma fé religiosa, ou negar a vida ou a liberdade a quem a não professa é, também, blasfemar. É crucificar de novo quem, tido por blasfemo, deu a sua vida pela liberdade das consciências de todos os homens, sem excepção.