Santana-Maia Leonardo - Rede Regional de 17-2-2016
A afirmação do Benfica de Eusébio como um dos grandes clubes europeus coincidiu precisamente com o eclodir da guerra colonial e o isolamento do Portugal de Salazar. E o Estado Novo não perdeu a oportunidade de conferir ao Benfica do moçambicano Eusébio o estatuto de símbolo da portugalidade com que quis vender a imagem do Portugal multicultural e da colonização exemplar. Não foi, por acaso, que Salazar impediu a saída de Eusébio para o Inter, interferindo directamente na gestão do clube como Eusébio recordou na sua entrevista ao Expresso de 12/11/2011: “Houve a Juventus e depois o Inter de Milão. Mas o 'padrinho', alcunha que eu pus a Salazar, não deixou. Acho que ele gostava do país e gostava tanto que não me deixava ir porque pensava que era importante para o país. (…)”
E a partir daqui o Benfica de Eusébio passou a confundir-se com o Portugal de Salazar e a cultivar os valores do regime: Deus (a Catedral era o seu estádio), Pátria (só tinha jogadores portugueses, era a selecção nacional, a Nação) e Família (quem não fosse do Benfica não era bom chefe de família). E se “a águia imperial” apenas, por mera coincidência, era o símbolo do clube, a expressão “O Glorioso” é retirada declaradamente do cardápio fascista. Quem não se recorda do Portugal Glorioso de Salazar, copiado da Gloriosa Roma de Mussolini, e que era repetido até à náusea 24 horas por dia? E tal como na política, também no futebol havia os bons portugueses que eram do Benfica e os outros. Resumindo: o Benfica era Portugal e o resto era paisagem.
Para quem como eu nasceu em Setúbal, uma cidade que nos anos 60 estava em grande crescimento e que aspirava a rivalizar com Lisboa, nada nos dava mais prazer do que ganhar ao Benfica, o que não era fácil até porque o próprio regime não permitia que o poder centralista e hegemónico de Lisboa fosse posto em causa através do futebol. É bom não esquecer que o presidente da FPF era obrigatoriamente indicado por um dos clubes grandes de Lisboa. Salazar, como se sabe, nunca foi homem de dar abébias. Começa-se no futebol e, depois, nunca se sabe onde é que acaba…
Com o 25 de Abril, o Benfica abanou mas não caiu porque, à boa maneira portuguesa, passou a equipar de vermelho quando, na véspera da revolução, equipava de encarnado, o que lhe permitiu esconder o seu passado glorioso ao serviço do Estado Novo, mantendo as mordomias, os vícios e os tratamentos de favor. Basta, aliás, ver as capas dos jornais desportivos e a forma como continuam a colar a imagem do Benfica e dos seus feitos a Portugal, enquanto os mesmos feitos (ou maiores) realizados por outros clubes e atletas, ainda que em representação das cores nacionais, são, pura e simplesmente, desvalorizados e atirados para um canto de página ou para uma nota de rodapé.
Cinquenta anos após o 25 de Abril, não há benfiquista que não continue a alimentar o sonho totalitário do clube único, supranacional e hegemónico. Neste momento, só em território nacional, segundo as suas contas, já vão em seis milhões de adeptos. E eu acredito nisso, tendo em conta a forma como os estádios da província se enchem de benfiquistas para rejubilarem com a derrota do clube da sua terra ou da sua região, numa das maiores manifestações do nosso provincianismo saloio e de subserviência a Lisboa.
Acontece que, quando um clube tem seis milhões de adeptos, num universo de 9 milhões, o campeonato fica automaticamente viciado, sem haver sequer necessidade de corromper ninguém: basta que cada um dos seus seis milhões de adeptos aja por amor à camisola. Os outros, se quiserem ganhar alguma coisa, é que precisam de corromper…