Deus, Francisco e os homens
O primeiro destaque que toda a comunicação social deu sobre o perfil do novo Papa foi o facto de ser contra o aborto e o casamento de homossexuais, como se fosse possível um Papa católico ser a favor de uma coisa ou de outra.
Não sou crente, nem ateu, nem agnóstico. Sou apenas descrente. Descrente da natureza humana. E quem não crê no homem não pode, obviamente, acreditar em Deus.
No entanto, sou suficientemente inteligente para perceber que é impossível acreditar em Deus e defender o aborto ou o casamento entre homossexuais porque são inconciliáveis. Isto não significa que não possa haver cristãos que já tenham recorrido ao aborto ou que sejam homossexuais. Mas são coisas diferentes.
Como todos sabemos, para a maior parte das actividades humanas, como a respiração, a digestão ou a locomoção, o organismo que desempenha tal função ou acto é o indivíduo humano. No entanto, no que diz respeito ao acto reprodutivo, o organismo que desempenha esta função não é o indivíduo humano mas o casal humano (macho/fêmea). O casal humano é, consequentemente, uma unidade orgânica que se alcança precisamente no acto reprodutivo da espécie, mesmo nos casais infecundos.
Ora, acreditar em Deus é incompatível com a crença de que o homem e a mulher são fruto do acaso. Pelo contrário, acreditar em Deus é acreditar que homem e mulher são uma unidade orgânica que tem por finalidade produzir o milagre da vida, ou seja, dar continuidade à obra de Deus. Acresce que, para um verdadeiro cristão, não se esgota na concepção e no nascimento a função do casal, cabe-lhe ainda a obrigação moral de educar o seu filho no seio da família, transmitindo-lhes os valores cristãos através do exemplo.
O amor a que Deus faz apelo não tem nada a ver com as pulsões sexuais e do momento que tanto caracterizam hoje as relações humanas em que tudo é efémero e passageiro. O amor a que Deus faz apelo é o amor eterno, para toda a vida, independentemente das circunstâncias. Ou seja, não é o amor egoísta que tem por objectivo satisfazer as necessidades de cada um e em cada momento. Pelo contrário, é um projecto de vida ao serviço dos outros e do outro e que apenas se satisfaz com o que dá e não com o que recebe. É o amor-dever e não o amor-prazer.
Por outro lado, quem acredita em Deus acredita na sacralidade da vida humana desde a concepção até à morte. Uma coisa é o espermatozóide e o óvulo (gâmetas), outra coisa é o zigoto humano, geneticamente único e distinto dos seus pais, ao contrário dos gâmetas, e que é capaz de se desenvolver até se tornar feto, bébé, criança, adolescente e adulto. Na concepção passa a existir um organismo distinto, unificado, que se vai auto-regulando e desenvolvendo, consoante o seu próprio programa genético. Consequentemente, defender o aborto significa pôr em causa a própria ideia de Deus.
Eu reconheço que, hoje em dia, num tempo em que toda a gente se preocupa apenas consigo e com o seu bem-estar pessoal e profissional, é muito difícil encontrar alguém, mesmo cristão, disponível para sacrificar a sua vida num projecto destes. Mas Deus não existe para aliviar a consciência pesada dos homens, mas para a tornar bem pesada, caso a sua vida não se coadune com os valores cristãos. Acreditar em Deus é acreditar que os homens são filhos de Deus e foram feitos à sua imagem e não o contrário, como é óbvio, porque isso significava, pura e simplesmente, a morte de Deus.
Finalmente, uma nota para todos aqueles cristãos que anseiam por um Papa que acabe com os rituais, as indumentárias e o formalismo solene das diferentes cerimónias religiosas. Ora, a solenidade dos actos, as indumentárias e os rituais são indispensáveis para não banalizar o sagrado que tem de ter sempre uma componente de mistério. E isto aplica-se, de resto, a outras actividades humanas. Basta ter em conta o que sucedeu nas escolas e está a suceder nos tribunais, a partir do momento em que professores, juízes, advogados e legisladores passaram a desvalorizar os formalismos, os rituais e a forma como os diferentes actores se vestem, comportam e apresentam em público, no desempenho das suas funções.
Concluindo: apesar de não ser crente, nem cristão, tenho fé que o novo Papa consiga ser um homem moderno como Bento XVI, capaz de defender os valores intemporais da civilização judaico-cristã contra o relativismo moral do mundo pós-moderno.
Março de 2013