A reforma estrutural das mentalidades
Acaba de ser publicado um estudo da UEFA sobre as principais ligas europeias que conclui o seguinte relativamente a Portugal: (I) a nossa Liga consegue ter menos gente nos estádios do que as competições secundárias da Alemanha e da Inglaterra e (II) o Benfica é o clube europeu que concentra a maior percentagem de adeptos dentro do seu próprio país (47%).
O que é que uma coisa tem a ver com a outra? Tem tudo a ver. É precisamente pela razão oposta que a Inglaterra é o país com mais gente nos estádios. Em Inglaterra, por exemplo, o Manchester United reúne apenas 15% de preferências e, em Espanha, Real Madrid e Barcelona (juntos) reúnem apenas 33%.
E, então, se olharmos para a distribuição das receitas dos direitos televisivos, a situação portuguesa ainda é mais escandalosa. Enquanto, em Inglaterra, a distribuição das receitas televisivas é equitativa, independentemente do peso, do historial e do tamanho do clube a nível nacional ou mundial, tal como acontece na Alemanha onde a diferença entre o que recebe o 1º classificado e o último não é significativa, em Portugal, a distribuição das receitas televisivas ainda contribui mais para cavar o fosso entre grandes e pequenos. Aliás, dos programas e das primeiras páginas dos jornais desportivos portugueses, à excepção dos três grandes, os restantes clubes nacionais é como se não existissem.
Não conheço nenhum português que não consiga compreender que, quanto mais equilibrado for o campeonato, mais competitivo se torna, mais adeptos atrai e mais receitas gera. Mas também não conheço nenhum português que seja capaz de defender esta evidência, quanto mais de a pôr em prática.
Com efeito, não é preciso ser muito inteligente para perceber que um campeonato de futebol a sério necessita, antes de mais, de clubes em número suficiente, sendo certo que um clube de futebol da I ou da II Liga pressupõe forçosamente uma massa fiel de adeptos (e não adeptos de segundo amor) capaz de, no mínimo, encher o estádio.
Acontece que, em Portugal existem três clubes que funcionam em regime de monopólio, quer em relação aos adeptos, quer em relação às receitas. Ora, três clubes é um número manifestamente insuficiente para se poder organizar um campeonato não só competitivo dentro do campo como também que dê garantias de isenção e imparcialidade fora dele. Não nos podemos esquecer que a paixão clubística tem o condão de transformar em seres absolutamente irracionais até pessoas com dois dedos de testa.
A organização de um campeonato onde só existem verdadeiramente três clubes e um deles tem 47% dos adeptos fica automaticamente inquinada à partida porque das duas uma: ou esse clube tem naturalmente a maioria em todos os poderes de decisão fora e dentro de campo (árbitros, presidentes de clubes, dirigentes associativos, delegados aos jogos, jornalistas desportivos, políticos, etc.) ou os outros dois clubes têm de trabalhar no subterrâneo para impedir que isso aconteça. Ora, qualquer das duas alternativas é perversa e corrompe necessariamente a verdade desportiva. Aliás, o que se passa em Portugal é muito semelhante ao que se passaria na Catalunha, se se tornasse num Estado independente e quisesse organizar o seu próprio campeonato de futebol, face ao peso desmesurado do Barcelona relativamente aos outros clubes catalães.
Em todo o caso, o futebol é sempre o espelho de um país. E um país macrocéfalo, avesso a qualquer esforço de coesão territorial ou social, pouco competitivo, corrupto e cheio de subterrâneos e de empresas de "faz de conta" como o nosso não podia aspirar a ter um futebol diferente.
Se o Benfica, o Sporting e o Porto querem participar, efectivamente, num campeonato de futebol profissional a sério, deviam pressionar a Federação Portuguesa de Futebol para propor à sua congénere espanhola que estes três clubes integrassem a Liga espanhola, passando esta a chamar-se Liga Ibérica. Aliás, tendo em conta a mentalidade do adepto português que, por preguiça e cobardia, prefere sempre estar ao lado dos grandes, em vez de lutar pelo clube da sua terra e da sua região, não há outra forma de termos campeonatos competitivos e estádios cheios.
Acresce que, se fosse esse o caminho escolhido, dado o peso cultural do futebol, estaríamos perante o mais decisivo contributo para uma verdadeira reforma estrutural das mentalidades, essencial para sobrevivermos num mundo altamente competitivo. Sobretudo quando somos um povo que tem horror a correr riscos e, consequentemente, cola-se, por natureza, às maiorias e aos grandes, sendo um profundo entusiasta das vitórias antecipadamente garantidas.
Abril de 2014