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COLUNA VERTICAL

"A coragem é a primeira das qualidades humanas porque garante todas as outras.." (Aristóteles)

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"A coragem é a primeira das qualidades humanas porque garante todas as outras.." (Aristóteles)

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O Novo Mapa Judiciário é não só a assunção definitiva de Lisboa como a Cidade-Estado da República, ficando Portugal reduzido à estreita faixa litoral delimitada a sul pelo Tejo, a norte pelo Douro e a leste pela A1, como também a institucionalização da divisão dos portugueses em cidadãos e metecos.

E não me venham com a conversa da troika porque se o Governo quisesse podia ter aproveitado a oportunidade para levar a cabo uma verdadeira Reforma do Estado, reduzindo, simultaneamente, a dívida pública e o défice e tornando Portugal um país mais coeso e equilibrado territorial e socialmente. Bastaria que se fizesse coincidir a reforma administrativa e do mapa autárquico, com a reforma do mapa judiciário e com a reforma dos círculos eleitorais e da lei eleitoral, fazendo da coesão territorial um verdadeiro desígnio nacional. Ninguém põe em questão nem a necessidade de reduzir custos, nem a impossibilidade de toda a gente ter um hospital, um tribunal ou uma escola à porta. Agora não pode é ficar tudo à porta dos mesmos.

E os argumentos que a ministra [1] utiliza para defender esta reforma são tão flagrantemente mentirosos que ainda é mais revoltante ouvi-los do que assistir à aprovação de uma reforma tão iníqua e fracturante como esta (fracturante porque fractura o país em dois). Mas vamos por partes: primeiro, o lógico e, depois, o óbvio.

PONTO UM - Era necessário uma reforma do mapa judiciário? Era. Era necessário fechar alguns tribunais? Provavelmente. A organização judiciária assentava nos distritos? Não. A divisão administrativa do país em distritos foi actualizada nas últimas décadas em consequência das mudanças profundas que o país sofreu? Não. 

Consequentemente, não tendo o Governo ainda levado a cabo a urgente reforma administrativa e das circunscrições administrativas, designadamente, regiões, distritos e autarquias, qualquer reforma do mapa judiciário devia processar-se dentro dos círculos judiciais existentes até para não condicionar a necessária e urgente reforma administrativa. Como é lógico.

PONTO DOIS – Diz a senhora ministra que o objectivo desta reforma é levar para o interior as especializações. Mas, à excepção de Lisboa, o resto do País tem dimensão para ter uma justiça especializada? É óbvio que não. E aqui começa a discriminação entre cidadãos e metecos.

Com efeito, a multiplicação e concentração nas capitais dos distritos de tribunais especializados vai provocar inevitavelmente a autonomização de cada uma das especialidades. Mas os metecos, quando precisarem de aceder à justiça, podem ir bater à porta do juiz especialista para lhe tratar do seu caso? É óbvio que não. Os metecos terão naturalmente de procurar um advogado que os represente para poderem aceder à justiça, advogado esse que tem de estar dotado das competências necessárias para representar o seu cliente na respectiva especialidade.

Mas um advogado de Castelo de Vide, de Portalegre, de Castelo Branco, de Bragança ou de Grândola Vila Morena, etc., pode dar-se ao luxo de ter uma especialidade? Não. E porquê? Porque, à excepção de Lisboa e Porto, as restantes cidades e vilas do nosso país não têm dimensão, o que significa que, se caminharmos para as especializações de todas as áreas do Direito, apenas as sociedades de advogados de Lisboa e Porto poderão dar resposta às necessidades dos cidadãos. Mas os habitantes de Castelo de Vide, de Portalegre, de Castelo Branco, de Bragança ou de Grândola Vila Morena têm dinheiro para ir a Lisboa contratar um advogado especialista, por exemplo, em Família e Menores para tratar de uma questão relacionada com a regulação das responsabilidades parentais? Não. E o Estado, através do apoio judiciário, vai nomear-lhe um advogado especialista de uma sociedade de advogados de Lisboa? É óbvio que também não. Ou seja, os metecos não tem outro remédio a não ser contratar ou ver nomeado o advogado da sua terra que não é nem tem condições para ser especialista. Consequentemente, a justiça ainda se afunila mais para quem é pobre e vive no interior. Como é óbvio.

É claro que, para os magistrados, esta reforma é excelente porque o trabalho torna-se rotina, com tanta especialidade, e estão instalados na capital do distrito a sonhar ir viver, em breve, para a região de Lisboa, se não viverem já lá. Para as grandes sociedades de advogados de Lisboa, então é ultra-excelente, porque a senhora ministra encarrega-se de amontoar nas capitais de distrito as acções e as especialidades que interessam para eles lá irem comer.

A quem é que não interessa, então, esta reforma? Aos metecos, aos advogados dos metecos e a todas as cidades, vilas e aldeias do País que se situam fora dos muros da República de Lisboa. Sendo certo que uma justiça especializada afunila sempre o acesso ao direito e deforma sempre o julgador. Como ensinava Hipócrates, “aquele que só sabe de Medicina nem mesmo de Medicina sabe”.

Em vez de especialidades, a ministra devia preocupar-se, antes, com as especificidades de cada região porque é mais fácil um juiz francês residente em Paris julgar um litígio ocorrido em Lisboa do que um juiz residente em Lisboa julgar um litígio entre vizinhos trasmontanos.

Relativamente aos custos, a senhora ministra já teve, pelo menos, a honestidade de reconhecer que a reforma proposta não os vai reduzir. Pelo contrário, vai aumentá-los. Porquê? Em primeiro lugar, porque vai obrigar o Estado a gastar milhões na construção e adaptação dos tribunais das capitais de distrito para receberem todas as especialidades, quando existem nas cidades e vilas dos distritos instalações novas, em folha, que poderiam receber as especialidades sem qualquer custo e que vão ficar ao abandono. Em segundo lugar, porque vai retirar às cidades e vilas do interior o movimento natural que um tribunal sempre gera, o que vai provocar um efeito de bola de neve com grandes repercussões nas frágeis economias locais. Como é óbvio.

Então, porque não se aproveitam as instalações existentes nas vilas e cidades dos diferentes distritos, para distribuir as diferentes especialidades? As pessoas não podem querer ter todas um tribunal ao pé da porta, não é verdade? Ou será que o argumento só serve para os metecos? A resposta é óbvia: porque, por um lado, os senhores magistrados não querem ir para o interior e, por outro, só a concentração na capital de distrito é rentável para as grandes sociedades de advogados de Lisboa aí abrirem uma sucursal. Como é óbvio.

Esta reforma do mapa judiciário é efectivamente uma reforma, como a senhora ministra diz, que não só não visa poupar dinheiro ao Estado (bem pelo contrário, o Estado vai gastar mais, directa e indirectamente) como também é feita a pensar nas pessoas. Só que não é nas pessoas todas mas tão-só nas amigas dos nossos governantes, ou seja, as sociedades de advogados de Lisboa. Em mais ninguém.

Aliás, a reforma do mapa judiciário espelha na perfeição a estratégia e a política deste Governo: sacrificar os pequenos e a classe/cidades médias para beneficiar os grandes. As instituições são como as árvores, precisam de ministros que saibam da poda e não de motosserristas que só vêem lenha para a lareira dos amigos.

Abril de 2014

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[1] Paula Teixeira da Cruz, ministra da Justiça do PSD