O regresso de Odorico
“Já mandei abrir um rigoroso inquérito para apurar as responsabilidades e punir os responsáveis”. Era sempre assim que reagia Odorico Paraguaçu quando falhava alguma das suas ínvias iniciativas para inaugurar o célebre cemitério de Sucupira. E perante o olhar atónito dos seus colaboradores, que bem sabiam ser ele o principal responsável, Odorico tranquilizava-os. O importante era ganhar tempo para o assunto deixar de ser notícia. E, depois, quando o assunto caísse no esquecimento, o inquérito seria arquivado por inconclusivo.
Ao repetir agora a rábula de Odorico Paraguaçu, a ministra da Justiça [1] deve estar convencida de que só ela é que vê telenovelas em Portugal. Infelizmente, nós já nos rimos o suficiente com Odorico para agora já não acharmos graça à repetição da novela em versão feminina.
Em todo o caso, para aqueles intelectuais que não gostam de novelas e, consequentemente, não se aperceberam que Odorico Paraguaçu é o novo ministro da Justiça, gostaria de lhes chamar a atenção para uma coisa óbvia: com Citius ou sem Citius, a justiça ficava sempre sitiada.
Mas deixemos os “entretanto” e passemos aos “finalmente”. Há tribunais com cinco vezes mais juízes do que salas de audiência. Transferiram-se mais de três milhões de processos para tribunais que não tinham nem instalações, nem funcionários em número suficiente para os receber, o que significa que foi uma sorte o Citius não funcionar porque camuflou todos os outros gravíssimos problemas.
Além disso, é ofensivo ouvir a ministra insinuar que contra esta reforma estão interesses poderosos, quando os grandes defensores desta reforma são precisamente as grandes sociedades de advogados e o poder económico e financeiro sediado em Lisboa que acham que os tribunais só deviam servir para resolver os seus problemas, falando sempre com enorme desprezo e enfado das ninharias que afectam a vida da ralé e do interior pobre.
Os únicos interesses violentamente atingidos por esta reforma são precisamente os das pessoas mais pobres das zonas mais pobres de Portugal que ficaram a mais de 100 Km dos tribunais de comarca, sendo certo que 10 Km na serra não demoram a percorrer o mesmo tempo que 10 Km de metropolitano. E sabendo-se que o apoio judiciário não paga o transporte de táxi, como se garante o acesso ao direito e à justiça desta gente que não tem meios nem transporte público que lhes possibilite a deslocação ao tribunal?
Esta gente já vive no fundo de um poço e o Governo retira-lhe agora a única escada de acesso à cidadania.
Para já não falar das consequências para as empresas e serviços do interior sediados fora das capitais de distrito quando ficarem dias inteiros privados dos seus trabalhadores que sejam indicados como testemunhas, uma vez que estas vão ter de se deslocar em grupo e a primeira a ser ouvida vai ter de esperar pela última. Perde-se, assim, uma das medidas emblemáticas do novo Código de Processo Civil que obriga os juízes a fixar as horas em que as testemunhas vão ser ouvidas.
Além disso, como o interior pobre litiga quase todo com apoio judiciário, as custas com as deslocações e os dias perdidos pelas testemunhas não só vão aumentar muito como vão ser pagas pelo Estado, o que vai sobrecarregar ainda mais o orçamento do ministério da Justiça.
Concluindo: para que a reforma do mapa judiciário resulte numa verdadeira poupança do funcionamento da máquina judiciária, é necessário privar o interior pobre de aceder ao direito e à justiça. Caso contrário, a justiça sairá mais cara ao Estado, às empresas e aos cidadãos.
Acontece que privar o interior pobre de aceder ao direito e à justiça constitui uma violação flagrante de um princípio constitucional estruturante do Estado de Direito democrático. Em Portugal, já havia portugueses de primeira e de segunda. Agora passa a haver uma terceira categoria: os excluídos.
Outubro de 2014
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[1] Paula Teixeira da Cruz, ministra da Justiça do PSD