O Fogo de Santelmo
Hoje é frequente ouvirmos dirigentes da administração pública e do poder local, professores, magistrados, advogados, etc. desabafarem que não têm tempo para ler. Que não tenham tempo para ler, eu até compreendo. O que eu já não compreendo é como pode uma pessoa que não tem tempo para ler ser dirigente da administração pública ou do poder local, ser professor, magistrado ou advogado.
Como dizia Hipócrates, «aquele que só sabe de medicina nem mesmo de medicina sabe.” E se alguém pensa que o que aprende na Universidade é suficiente para o exercício competente e qualificado da sua profissão, porque o resto vem com a experiência, está muito enganado. E este é, precisamente, um dos nossos grandes problemas, na medida em que a falta de estudo e de leitura (e quando me refiro a leitura, não me refiro obviamente ao Correio da Manhã e aos romances de faca e alguidar) torna as pessoas limitadas e com as vistas curtas. E não há pior magistrado, advogado, professor, dirigente local, regional ou nacional do que uma pessoa com vistas curtas.
Existe uma estância n’ Os Lusíadas que coloca precisamente o dedo na ferida e que hoje ainda continua actual, provavelmente porque muita gente fala n’Os Lusíadas sem nunca os ter lido. Refiro-me à estância que introduz o episódio “O Fogo de Santelmo e A Tromba Marítima”: “Os casos vi que os rudos marinheiros,/ Que têm por mestra a longa experiência,/ Contam por certos sempre e verdadeiros,/ Julgando as cousas só pela aparência,/ E que os que têm juízos mais inteiros,/ Que só por puro engenho e por ciência,/ Vêem do mundo os segredos escondidos,/ Julgam por falsos, ou mal entendidos.”
Dum lado, temos, assim, os rudes marinheiros que têm a experiência mas não têm estudos e que, por isso, não têm capacidade para entender os novos fenómenos a que assistem; do outro lado, temos os estudiosos que, por assentarem todo o seu conhecimento no saber livresco, faltando-lhes a experiência, tomam por falsos os relatos dos marinheiros.
E nós hoje continuamos praticamente na mesma, elogiando muito Camões mas sem lhe seguir o exemplo: “Nem me falta na vida honesto estudo,/ Com longa experiência misturado (…)” Esta é a chave da sabedoria. E sabedoria é precisamente o que nos falta. Ou seja, a simbiose entre o conhecimento e a experiência.
Santana-Maia Leonardo - Diário As Beiras de 10-8-2015