Santana-Maia Leonardo - Sócio n.º694 de 5/6/1965
Fiz-me sócio do Vitória no dia 5 de Junho de 1965, com seis anos de idade. Nesse tempo, Setúbal e Vitória tinham sido unidos por Deus e só a morte os podia separar. Em 1967, o meu pai faleceu nesta cidade, com 37 anos, e deixei Setúbal para sempre. Apenas o Vitória, que levei comigo, me mantinha ligado à minha Setúbal, ao meu pai e àquele tempo em que juntos festejávamos e sofríamos por amor ao Vitória e por devoção a Setúbal no Estádio do Bonfim.
Uma das minhas grandes aspirações, quando pedi ao meu pai para me fazer sócio do Vitória com 6 anos de idade (fui eu que pedi), era um dia chegar a sócio n.º1. Para os mais distraídos ou ignorantes, é importante sublinhar que o sócio n.º1 é o símbolo vivo, a bandeira viva, uma verdadeira instituição dentro do próprio clube, porque é ele o depositário dos valores e do património imorredoiro da instituição. O sócio n.º1 não tem poder executivo mas tem o valor simbólico do rei nas monarquias constitucionais. E o seu sucessor natural não são, como é óbvio, os seus filhos ou netos mas o sócio n.º2 e assim sucessivamente.
Até há cerca de uma semana, já me tinha conformado de, por razões naturais, não conseguir cumprir o sonho de infância de chegar a sócio n.º1. Com efeito, para se chegar a sócio n.º1 não basta ser leal ao clube a vida inteira, é necessário também uma grande longevidade, requisito essencial que eu não perspectivo poder preencher.
No entanto, há cerca de uma semana, recebi um dos maiores baldes de água fria de toda a minha vida. Segundo me disseram, a assembleia ou a direcção do clube tinham decidido, há uns anos a esta parte, acabar com as actualizações dos números de sócios. Ou seja, os números de sócios que, em qualquer colectividade viva, digna e honrada, se destinam a hierarquizar os sócios pela sua antiguidade e lealdade ao clube, no Vitória servem, neste momento, para identificar os talhões do cemitério onde estão ou vão ser enterrados os titulares do respectivo número de sócio à data da sua morte.
Pelos vistos, os números de sócios inferiores ao meu deixaram de ser ocupados por sócios vivos mais antigos do que eu para se transformarem em jazigos usados pelos herdeiros do sócio falecido como se o número de sócio fosse propriedade dos sócios e pudesse ser livremente transmitido aos seus herdeiros. Por este andar, qualquer dia também passam a ser vendidos, se é que o não são já.
Eu bem estranhava o meu número de sócio manter-se inalterado há tantos anos mas sempre pensei que isso se devesse ao facto de os sócios mais antigos do que eu serem também mais resistentes. No dia em que recebi esta triste notícia, não consegui dormir e pensei, durante toda a noite, em entregar o meu cartão de sócio. Se o Vitória já morreu, tenham a coragem de o enterrar mas não o transformem num cemitério. Jacinto João, Emídio Graça, Vítor Batista, Jaime Graça e tantos outros grandes jogadores que vestiram com orgulho a camisola do Vitória continuarão a viver certamente no coração de todos os vitorianos mas não podem fazer parte do actual plantel do Vitória. Com os sócios passa-se rigorosamente o mesmo.
Que o clube esteja falido, deixa-me triste!
Que o Estádio do Bonfim, que já foi um dos maiores estádios nacionais, esteja decadente, deixa-me desolado!
Que Setúbal se conforme, hoje, ao triste papel de bairro periférico de Lisboa, envergonha-me!
Mas ver o Vitória transformado num enorme cemitério, provavelmente por já não haver gente viva e que ame verdadeiramente Setúbal e o Vitória em número suficiente, mata-me!
Se o Vitória ainda não morreu (para ser sincero, já não estou tão certo disso), cuidem dele com a dignidade que um clube com a sua grandeza merece, começando por enterrar os sócios que já morrerem para que os vivos ocupem o seu lugar e possam celebrar a VIDA, prestando desta forma a melhor homenagem a todos aqueles, designadamente, aos sócios falecidos, que lutaram, viveram e morreram pelo Vitória.
Não existe grandeza sem mística e não existe mística sem símbolos, sem valores e sem referências. Se o Vitória quer voltar a ser o Vitória tem de renascer das cinzas e tem de começar por dentro e, pelos vistos, do zero.
Como dizia Victor Cunha Rego, “o importante num salto não é o cavalo ou seus arreios: é o coração do cavaleiro”. A qualidade sempre foi mais importante do que o número. Poucos mas bons. Para reconquistar Setúbal e conquistar a Liga, o Vitória e a sua direcção não precisam de muitos soldados mas de um exército leal, disciplinado e organizado, ainda que, no início da caminhada, possa ser pequeno. Mas tem de ser composto por soldados vivos e com grande coração e não por jazigos, campas fúnebres ou infiltrados. E os oficiais deste exército têm de ser os sócios mais antigos. São eles que têm de ter o carisma de arrastar e mobilizar, com o seu exemplo e dedicação, os nossos soldados à Vitória e ao Vitória.
Não quero morrer sem ver o Vitória campeão nacional. E já não posso esperar muito tempo. Pelo Vitória! Até à Vitória Final!