Perdido por cem, perdido por mil...
É sempre com um misto de curiosidade e estranheza que vemos ser comentado num jornal nacional um caso em que interviemos (neste caso, mais precisamente, o defensor do arguido foi o meu filho). Trata-se, no entanto, de uma decisão importante na medida em que já vai sendo tempo dos tribunais se habituarem a tratar as testemunhas decentemente.
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Francisco Teixeira da Mota – Público 5/7/2013
No dia 7 de Junho de 2011, cerca das 13h50, no decurso de uma audiência de discussão e julgamento realizada num qualquer tribunal do nosso país, foram tomadas declarações ao Jorge na qualidade de testemunha. Após responder quanto à sua identificação e o local onde se encontrava a cumprir uma pena de prisão de 22 anos, o Jorge encetou um diálogo com a juíza que o interrogava:
Jorge: Permita só uma coisa. Eu não vou prestar declarações porque isto é inadmissível, estou... Eu estar duas horas...
Juiza: Ó Sr. Jorge, o Sr. Jorge, o Sr. Jorge...
Jorge: ...Estar duas horas, duas horas dentro de um carro, dentro de um carro fechado, sem comer, sem beber, eu não vou prestar qualquer tipo de declarações.
A juíza explicou-lhe, então, que, como testemunha, estava obrigado a prestar declarações, sob pena de cometer um crime. Jorge insistiu: "Porque o tribunal notificou-me pás 9, pás 9 e meia da manhã, são neste momento 20, 20 para a uma e o tribunal ainda não me tinha ouvido. Tou dentro de um carro, tou dentro de um carro, dentro de uma "ramona"... Sem comer... sem beber, sem comer, sem nada... Este tribunal tem calabouços... Eu vou-me recusar a prestar... por estes factos, eu vou-me recusar a prestar declarações ao tribunal."
A juíza explicou-lhe que tinha ouvido primeiro os arguidos, como a lei manda, e ele, como testemunha, só podia ser ouvido depois. Que ia agora ouvi-lo antes das outras testemunhas e, se não prestasse declarações, só seria ouvido ao fim do dia. Jorge não se intimidou: "Para mim, sr.ª juíza, vou ganhar igual, por mim não me importo de ficar aqui o dia todo..."
E reiterou que não iria prestar declarações. Acrescentou ainda: "As coisas não são assim. A gente, acho que temos que ter respeito um bocadinho pelas pessoas."
A juíza perguntou-lhe, de forma calma, mas incisiva: "Então quer incorrer na prática de um crime?" E o Jorge foi lacónico: "Ainda é só um? Veja lá, eu tenho uma pena de 22..."
A juíza advertiu-o uma vez mais das consequências da sua recusa de prestar declarações e o Jorge insistiu: "Sr.ª dr.ª juíza, eu, psicologicamente, não estou bem, são muitas horas fechado dentro de um carro, sem beber, sem comer, sem nada... Eu, psicologicamente, não estou em condições de prestar declarações hoje."
A juíza mandou-o, então, retirar-se da sala e ordenou que se extraísse uma certidão do que se passara para o Jorge ser julgado pelo crime de falsidade de testemunho. Este crime prevê uma pena de prisão de seis meses a três anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias, entre outras hipóteses, a "quem, sem justa causa, se recusar a depor".
Apresentado a julgamento, alguns meses depois, o tribunal, considerando que o Jorge, enquanto testemunha, tinha estado até às 13h45 dentro da viatura celular e que durante tal período não lhe fora facultada alimentação ou hidratação, entendeu que tinha tido justa causa para se recusar a prestar declarações e absolveu-o. O Jorge foi mandado em paz - de volta à sua cela, é certo - por estar em causa um direito que se desdobrava na prevalência da dignidade da pessoa humana, na igualdade de tratamento das testemunhas com intervenção em processo judicial e, bem assim, na integridade moral e física inviolável de todos.
Na verdade, o Jorge não se tinha recusado pura e simplesmente a prestar declarações, nomeadamente noutra ocasião, mas somente naquele momento, dadas as condições em que se encontrava. O tribunal, de resto, podia ter interrompido a audiência, mandado o Jorge ir almoçar e voltar - sempre na "ramona" - para prestar declarações no período da tarde.
Recorreu o Ministério Público, indignado com o benévolo tratamento dado ao Jorge, lembrando que também as outras testemunhas tinham estado durante o mesmo período de tempo na sala de espera e nenhuma se lembrara de se recusar a depor. Mas não teve sorte. O Tribunal da Relação de Évora, no passado dia 4 de Junho e pelos teclados dos desembargadores João Manuel Monteiro Amaro e Fernando Pina, confirmou a absolvição do Jorge.
A Relação de Évora lembrou que uma sala de testemunhas onde as pessoas podiam entrar e sair para ir beber ou comer qualquer coisa não é o mesmo que um carro celular fechado. E se, de facto, incumbe às testemunhas o dever de obedecerem às indicações que legitimamente lhes forem dadas quanto à forma de prestar depoimento, não podia deixar de se considerar, face às circunstâncias concretas, de muito duvidosa legitimidade a ordem que fora dada ao Jorge. Apesar de recluso, o Jorge não perdera o seu direito a ser tratado com dignidade, não passara a ser um "objecto" processual.
Moral da história: no nosso pais é preciso estar condenado a 22 anos de prisão e não termos nada a perder, para exigirmos ser tratados decentemente. E os riscos são grandes...