O conteúdo da democracia
Amartya Sen (*), in "A Ideia de Justiça"
A democracia significa um governo pela discussão. (...)
Na filosofia contemporânea, o entendimento da democracia tem-se vindo a alargar consideravelmente, a tal ponto que a democracia já não é apenas vista em termos de uma reivindicação de votação pública, mas, de modo muito mais amplo, em termos daquilo a que John Rawls chama «o exercício da razão pública». (...)
As votações têm, com certeza, um importante papel, mesmo para a expressão e eficácia do processo de argumentação pública, mas não são a única coisa que conta, e nelas não temos de ver senão uma parte - reconhecidamente de grande importância - do modo como a argumentação pública há-de operar numa sociedade democrática. Na verdade, a eficácia das votações, ela própria, depende de modo crucial de tudo o que elas implicam, ou seja, de coisas como a liberdade de expressão, o acesso à informação e a liberdade de dissentir. Em si mesmo, o voto pode até ser inteiramente inadequado, o que é abundantemente ilustrado pelas esmagadores vitórias eleitorais das tiranias que se instalaram em regimes autoritários, seja em tempos idos, seja no presente. (...)
No mundo, houve já muitos ditadores que alcançaram vitórias eleitorais gigantescas, mesmo sem usarem de qualquer coerção visível durante o processo de votação, sobretudo porque suprimiam a discussão pública e a liberdade de informação, além de se aplicarem na criação de um geral clima de apreensão e ansiedade.
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(*) Vencedor do Prémio Nobel da Economia