Cândido Ferreira (*) - Texto não publicado pelo Expresso
Na noite das últimas eleições legislativas, contra a onda de contestação que grassava no PS e quantos insistiam em contradições insanáveis à esquerda, escrevi que o “sistema bipartidário estava suspenso” e que António Costa seria, a partir daí, a “charneira” do poder político em Portugal.
Após uma sucessão de “animais ferozes” que quase nos levaram à bancarrota, e de "gentinha" que se comprazia com a miséria alheia, pareciam finalmente criadas condições para romper com o ciclo de declínio a que o “centrão” nos conduzira. Ao futuro Presidente da República, para além de combater a crispação e o desencanto, competiria dirigir a reorganização do Estado e garantir a sua sustentabilidade. Para isso, teria de romper com três “dês”: o distanciamento, o despesismo e a dependência.
Num jogo viciado, venceu o único candidato credível entre quantos tiveram direito à visibilidade. Um ano passou e, não é novidade, o atual Presidente é um ás em comunicação, tendo rompido com uma Presidência distanciada dos portugueses. O Palácio de Belém, em concorrência com o moribundo CCB, até abriu portas a iniciativas populares. E quando aterra em Portugal, o Presidente também se multiplica em visitas a prisões e a sem-abrigo, a escolas e ao diabo a sete. Tudo bem, se existisse uma lógica neste frenesim mediático, se dessas fugazes deslocações, sublinhadas com afetos e frases feitas, saíssem denúncias sobre as más práticas que reinam em muitas dessas Instituições, ou reuniões de trabalho com uma tutela com quem, na aparência, nada em mar de rosas. O anedótico episódio da “Cornucópia” foi, talvez, a única excepção a esta regra. O povo adora e as sondagens são "ótimas". Mas um ano depois da eleição, o circunspeto Aníbal, e a sua Maria, faziam melhor.
No que toca ao despesismo, a Presidência limitou comitivas, mas ainda não temos contas e nada consta sobre redução nas ex-Presidências. A falta de respeito pelos contribuintes continua a marcar a Administração, com o défice a ser "controlado" por adiamentos e cortes nos investimentos, e pela quebra dos compromissos oficiais com as empresas, sem que tenha alertado para esta tortuosa via, que conduzirá ao estrangulamento da economia. A promulgação das 35 horas/semanais, bem como a revelação de decisões de uma agência de rating, são outros deslizes que não contribuem para a necessária credibilização económica e política do nosso país. Nunca, nesta área tão sensível, o Presidente emitiu sinais claros. Não só visita, sem critério, as boas e as más autarquias, como nunca se bateu contra a explosão de taxas, sobretudo sobre imóveis. Pode alguém que usa os recursos do Estado para se deslocar a um jogo de futebol, intervir de forma eficaz, mesmo quando aparecem governantes a aceitar benesses ilegítimas?
Finalmente, a dependência face aos lobis instalados. Estamos melhor no combate à corrupção, mas a dignificação da Justiça, em Portugal, está ainda longe de um desfecho airoso. O Presidente já deveria ter convidado a PGR e o Presidente do TIC, entre outros, protagonistas determinantes nesta luta decisiva para o nosso futuro. A tónica na classe política, em desprimor de quem cria riqueza, cultura e valores, concretamente a rejeição de um Conselho de Estado Económico e Social que pudesse reforçar o papel da sociedade civil, é um erro estratégico colossal. Participando em tudo, mas não intervindo no terreno, a dependência do Presidente, face ao sistema, será mesmo a “cadeira” em que lhe concedo um claro “chumbo”.
Dotado de uma inteligência brilhante, o Presidente será sempre homem para surfar toda a onda: fazer o elogio fúnebre do castrismo, tal como no tempo da “outra senhora” apoiava a repressão; clamar contra a criação do SNS, para se tornar no paladino dessa medida; fugir à tropa e ser capaz de, na visita a Moçambique, assobiar sobre as tumbas de centenas de militares lá enterrados; apoiar quem esteja no poder, como antes o fazia com Cavaco Silva, quando ele já nem ia às escolas primárias. Igual a si mesmo, podem os poderosos e influentes de Portugal, políticos ou não, dormir descansados.
Para Portugal seguir em frente, por caminho coerente e seguro, não nos basta quem saiba ler as realidades e interpretar, nos palcos, os anseios populares. Enquanto é tempo, interessaria ganhar um “novo” Presidente capaz de afrontar os poderes e de se bater corajosa e persistentemente, pelas causas em que acreditamos e pelas mudanças necessárias.
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(*) Ex-candidato presidencial