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Eu não só não sou racista como vivi toda a minha infância com o desgosto de não ser preto.
Nasci em Setúbal, onde vivi até aos 9 anos, e, como praticamente todos os meus amigos, o único sonho da minha vida era ser jogador de futebol.
Naquele tempo, o meu clube e os dos meus amigos era naturalmente o Vitória e os meus ídolos eram Jacinto João, José Maria e Conceição. Três pretos.
Depois, olhava para o principal rival do Vitória e os melhores jogadores eram Eusébio e Coluna. No Belenenses, o rei era Matateu. O melhor jogador do mundo era Pelé. Todos pretos.
Ora, não era preciso ser muito inteligente para tirar esta ilação óbvia: os pretos, futebolisticamente falando, que era o único que me interessava, eram uma raça muito superior à dos brancos, fazendo com que eu atribuísse as minhas carências técnicas ao facto de ser branco.
Além diso, cresci com o mau pai a tratar a Rita Cigana por mãe cigana, por ter sido ela que o amamentou, em virtude de a minha avó ter morrido no parto.
Ora, tendo crescido com uma avó cigana e com o desgosto de não ser preto, como é que eu podia ser racista?
Não só não sou racista como não sou nacionalista.
As nacionalidades são um conceito recente inventado pelos historiadores do séc. XIX, com base em fragmentos avulsos recolhidos no passado que, no tempo em que ocorreram, não tinham o significado que eles lhe atribuíram e que serviram para fundamentar a irracionalidade nacionalista que foi a principal responsável pelos grandes conflitos mundiais do séc.XX.
Concordo, por isso, em absoluto com Eduardo Manzano Moreno, professor de investigação do CSIC e na Academia Global Britânica da Universidade de St. Andrews, quando afirma que é o diabo que tem carregado as identidades nacionais, através dos tempos, "como bem demonstram aqueles que praticam violências físicas e verbais justificando-as nos deveres sagrados e nas heróicas resistências dos seus antepassados.
Por isso, já vai sendo altura de nós, historiadores, nos deixarmos de armar em astrólogos que decifram constelações nacionais com base no passado e passarmos a ser os astrónomos que escrutinam no universo do tempo os elementos que nos trouxeram até aqui.
Talvez desta forma, fôssemos capazes de compreender que o que une as comunidades imaginárias do século XXI são os valores de solidariedade e igualdade que nunca passaram pela cabeça de nenhum dos nossos antepassados. (...)"
Santana-Maia Leonardo