Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

COLUNA VERTICAL

"A coragem é a primeira das qualidades humanas porque garante todas as outras.." (Aristóteles)

COLUNA VERTICAL

"A coragem é a primeira das qualidades humanas porque garante todas as outras.." (Aristóteles)

20201117_213959.jpg

Não há provavelmente povo no mundo que seja tão reverente aos senhores doutores e aos senhores presidentes como o povo português. Doutores e presidentes são o pedestal onde o povo português coloca os santinhos da sua devoção.

Acontece que, com a multiplicação de licenciaturas e o fácil acesso ao Ensino Superior, o povo devoto teme que o excesso de doutores possa retirar a auréola ao termo.  Por isso, já vai sendo hábito ouvir os aduladores do termo a fazerem apelo a que se trate apenas por doutores aqueles que fizeram o doutoramento ou, no máximo dos máximos, os licenciados em Medicina.

É certo que o termo “doutor” pode ser usado também como sinónimo de médico ou grau académico, se bem que aqueles que têm o grau académico de Doutor prefiram ser tratados por Senhor Professor Doutor ou, simplesmente, Senhor Professor.

No entanto, esclarece-se os ignorantes que a expressão doutor (Dr) usada nas relações sociais, em Portugal, não tem nada a ver nem com o sinónimo de médico, nem com qualquer grau académico, mas com a praxe académica. Com efeito, quando se chegava à Universidade, todo o estudante, segundo a praxe académica, tinha de passar por cinco níveis até acabar o curso: caloiro, puto, semi-puto, bacharel e doutor. Doutor era o estudante que tinha concluído o quarto ano. E o sonho português era que o filho chegasse a doutor.

Hoje, pelos vistos, há muita gente incomodada com a vulgarização do termo "doutor", defendendo que o seu uso seja limitado para manter a auréola. No entanto, se queremos atingir o nível civilizacional dos países mais desenvolvidos, onde as pessoas convivem umas com as outras sem complexos de inferioridade e respeitando-se, sem tropeçarem nos títulos académicos ou outros, o caminho a seguir deve ser precisamente o oposto: a generalização e vulgarização do termo “doutor” até à exaustão, para que todos os portugueses se passem a tratar com respeito e consideração, passando o termo “doutor” a ter um significado equivalente a “senhor”.

Santana-Maia Leonardo

Conselho de Bernard Shaw.jpg

Devo dizer que estou disponível para debater qualquer assunto, mas não estou disponível para responder a ofensas pessoais.

Por isso, todos aqueles que recorrerem a este método não fiquem surpreendidos de desaparecer do meu círculo de conversação, porque eu sempre segui este conselho de Bernard Shaw.

Santana-Maia Leonardo 

20210522_144154.jpg

O Tintim nasceu no dia 13 de Abril de 2010.

Como o próprio nome sugere, trata-se de um Fox Terrier de pêlo cerdoso que nasceu demasiado… rústico para ser Milu. Ia para usar a palavra “másculo”, mas ainda bem que travei a tempo, caso contrário ainda era atropelado pelos igualitários do género. E, neste tipo de acidentes de viação, o culpado é sempre quem conduz pela direita.

O Tintim foi trazido para minha casa pela mão do meu filho, mas, mal aqui chegou, mandou o meu filho ir dar uma volta, porque não estava para ser tratado como um cão.

O Tintim, como todos os Fox Terrier, tem uma personalidade muito vincada. Gosta de ser tratado como uma pessoa. Mas como uma pessoa dos países nórdicos, bem entendido, porque os portugueses, como dizia o Marquês de Pombal (o governante-modelo do povo lusitano), “só trabalham de chicote na mão.”

Ora, esta teoria pombalina não se aplica ao Tintim que gosta de ser tratado como um cidadão dos países civilizados do norte da Europa e não aos pontapés como os portugueses. 

O Tintim recorda-me constantemente a minha avó Assunção que me criou, após a morte do meu pai, como uma verdadeira mãe. Havia uma frase que não se cansava de repetir, provavelmente com receio que eu me esquecesse, e que continua a fazer eco dentro de mim: “Sou capaz de dar a vida por um filho ou por um neto, mas nunca me dêem pontapés”. E o Tintim encarna na perfeição o carácter da minha avó. A bem temos o que queremos do Tintim, mas ninguém lhe dê pontapés…

Uma vez, cerca da meia-noite, numa daquelas noites de inverno em que até custa meter o nariz de fora dos lençóis, fui dar uma volta com o Tintim pela zona ribeirinha, como era meu costume. Para quem não me conheça, eu vivi sempre em rota de colisão com as rotinas do cidadão comum. “Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; (…) mas eu nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. (…)” e nunca vou por onde me mandam. Fui sempre a formiga no carreiro que vinha em sentido contrário.

Não sou católico, nem socialista, nem benfiquista. Ou seja, não pertenço a nenhum dos rebanhos que por aqui se pastoreiam. Além disso, tinha o hábito de me deitar quando a maioria das pessoas se levantava e costumava sair de casa para desentorpecer as pernas, quando o povo já dormia profundamente, seguindo o sábio provérbio chinês: “Deita-te cedo e levanta-te cedo e não encontrarás ninguém interessante na vida.” E posso hoje afirmar, por experiência própria, que o sábio chinês estava cheio de razão.

Mas regressemos à zona ribeirinha, para não perdermos o fio à meada. Nessa noite de inverno, ia eu em amena cavaqueira com o meu amigo Tintim quando nos salta um gato ao caminho… e, por mais que eu chamasse o Tintim, nunca mais lhe pus a vista em cima.

Corri a zona ribeirinha de norte a sul, debaixo de um frio de rachar e uma chuva miudinha que se entranhava pelos ossos dentro. Raios partam o cão! E, quando já estava disposto a regressar a casa sem o cão, dou de caras com o Tintim empoleirado numa árvore e com o gato uns metros mais acima.

Passei-me completamente! Se te apanho, dou cabo de ti!

Só que o Tintim leu nos meus olhos o que lhe estava prestes a acontecer... E vai daí enfiou-se dentro da água gelada do rio Sor, ficando só com a cabeça de fora a olhar para mim. E enquanto eu, da margem, lhe rogava pragas e lhe fazia ameaças de morte, o Tintim só me dizia: “se és homem, vem-me cá buscar.” Foi, nesse momento, que eu percebi que o raio do cão era da raça da minha avó Assunção.

O Tintim cresceu juntamente com a Vitória, uma rafeira alentejana, como irmãos inseparáveis. E se o Tintim era a genica em pessoa, a Vitória era uma paz de alma, com quem o Tintim gostava de andar sempre a implicar, sem se amedrontar com o seu tamanho, puxando-lhe o rabo e toureando-a, ao ponto de a Vitória se passar completamente, sem nunca o conseguir apanhar.

A minha avó tinha sempre uma frase na ponta da língua para atirar à cara de quem, como eu, costumava fazer as coisas segundo a lei do menor esforço: “A preguiça nunca fez brilhar ninguém”. E a verdade é que o Tintim nunca foi um cão preguiçoso. Pelo contrário, sempre foi um cão muito activo e disponível para todo o tipo de brincadeiras, desde ir buscar e trazer a bola, subir e descer o escorrega, dar mergulhos para a água, nadar, jogar ao esconde-esconde, demonstrando uma energia inesgotável que faz as delícias dos meus netos.

É, aliás, o cão ideal para as crianças. Tem uma paciência de Job e uma energia de um atleta de alta competição. A minha neta com onze meses adora dar-lhe biscoitos, porque o Tintim é de uma delicadeza enorme a tirar-lhe o biscoito da mão, tal como acontecia com a Vitória, entretanto falecida.

Na vertente desportiva, eu e o Tintim temos muitos pontos em comum. Fui um desportista a vida toda. Até aos trinta anos, dediquei-me mais aos desportos colectivos: futebol, andebol e voleibol. Depois dos trinta anos, por razões profissionais e de tempo, passei a jogar futsal com os amigos e a praticar Judo e Karaté.

No entanto, o meu tio Armando tinha uma profecia que fatalmente acabou por se cumprir: “António, tu até aos cinquenta anos não vais notar a diferença, mas, depois dos cinquenta anos, vais levar uma porrada…

Em Março de 2012, quando tinha cinquenta e três anos de idade, ao sair do escritório, depois de ter feito 40 km de bicicleta, senti dificuldade em andar. Consultado um ortopedista, diagnosticou-me a calcificação dos tendões de Aquiles e disse-me que tinha de deixar de andar de bicicleta e de correr. “Que idade tem?” Tenho cinquenta e três anos. “Já fez análises a isto e àquilo?” Não. “Está na hora de fazer.

Quando recebi o resultado das análises, levei cá uma porrada que me vi à rasca para me voltar a levantar. E ainda hoje ando tipo tem-te-não-caias. Razão tinha o meu tio Armando… E o pior é que o filme não anda para trás.

Com o Tintim passou-se, mais ou menos, a mesma coisa. Em Maio de 2020, reparei que o Tintim andava a coxear. Levei-o ao ortopedista, que lhe fez precisamente a mesma radiografia que me tinha feito a mim, e o diagnóstico foi o mesmo. Consequentemente, também teve de deixar de andar de bicicleta e de praticar atletismo, para passar a fazer uma vida mais sedentária e caseira.

Hoje somos dois velhos e inseparáveis amigos que vivem a vida da mesma forma e sem grandes expectativas. Um dia de cada vez à espera que chegue o dia. Entretanto, vamos jogando ao dominó nos bancos do meu jardim e recordando as nossas proezas desportivas. À cautela, também já fiz ao Tintim o mesmo pedido que a minha avó Assunção me fez a mim e que eu não fui capaz de cumprir.

A minha avó faleceu no dia 20 de Novembro de 1989 no Hospital de Abrantes. E trinta e um anos após a sua morte, ainda me pesa na consciência não ter sido capaz de cumprir a promessa que me fez prometer: “Quando chegar a minha hora, nunca deixes que me levem para o Hospital. Quero morrer na minha casa para que o meu último olhar possa encontrar alguém que me seja querido por perto”. No entanto, quando a minha avó entrou em coma diabético naquele dia, apesar de ser previsível que fosse o seu último dia, não tive coragem de cumprir a promessa.

Mas eu também não quero morrer numa cama de hospital e espero que a minha avó abra, desta vez, uma excepção e me perdoe o pontapé que lhe dei. Por isso, já fiz um pacto com o Tintim para que nenhum de nós deixe que o outro vá morrer longe de casa. E, se tudo correr bem e a minha avó permitir, dormiremos juntos o sono eterno à sombra da oliveira da Vitória.

Santana-Maia Leonardo - O Mirante de 28/10/2022

Pág. 1/3