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Apesar de Camões ter colocado o Velho do Restelo no momento da partida da armada de Vasco da Gama para a Índia, a verdade é que a personagem do Velho do Restelo foi criada por Camões, 60 anos após a chegada de Vasco da Gama à Índia e trinta anos após a célebre carta de D. Afonso de Albuquerque ao rei D. Manuel I em que afirma que “as cousas são já despesa”.
É impossível não ver Camões naquele velho de aspecto venerando, que ficava nas praias, entre a gente, e que falava com a autoridade de um saber de experiências feito.
O Velho do Restelo não é contra os Descobrimentos, mas contra a forma como foram levados a cabo pelos portugueses, resultado da reconhecida falta de capacidade de liderança, organização e planificação típica dos povos que não se governam, nem se deixam governar. É o próprio Camões que, no final de Os Lusíadas, profundamente amargurado, é obrigado a dar razão à voz corrente na França, na Alemanha, na Itália e na Inglaterra de que os portugueses são melhores para ser mandados do que para mandar.
Aliás, o Velho do Restelo identifica, de imediato, a principal causa do fracasso económico dos Descobrimentos e que continua a ser hoje a principal causa da ruína económica das políticas dos sucessivos governos: a Ganância. E a verdade é que ainda hoje o povo néscio, ou seja, as pessoas ignorantes e estúpidas continuam a ser enganadas pelos chico-espertos com o mesmo tipo de balelas.
Camões, no final de Os Lusíadas, faz um apelo ao Rei para tomar “conselho só d'exprimentados / Que viram largos anos, largos meses, / Que, posto que em cientes muito cabe, / Mais em particular o experto sabe.” Ou seja, para tomar conselho dos Velhos do Restelo, a voz da razão, alicerçada num saber de experiências feito, e não nos Chico-Espertos do Restelo, movidos exclusivamente pela ganância e pela cobiça.
Mas, infelizmente, nem o Rei seguiu o seu conselho, nem os portugueses, que continuam a desdenhar da sabedoria dos Velhos do Restelo e a entregar os destinos do país a chico-espertos, movidos unicamente pela ganância e pela cobiça.
Santana-Maia Leonardo - A Ponte de 28/3/2022
Cartoon de Osama Hajjaj, em homenagem a Vicent Van Gogh.
A minha neta tem dez anos e frequenta o 5.º de escolaridade. Relativamente a uma parte significativa dos seus colegas, a minha neta é uma privilegiada, porque, sendo filha e neta de pais e avós licenciados em diferentes áreas, tem à sua disposição quem a possa ajudar a estudar, a fazer os trabalhos de casa e a tirar-lhe as suas dúvidas. Ou seja, a minha neta, à semelhança do que acontece com os filhos da classe média com formação universitária, parte com uma grande vantagem sobre os filhos dos pais das classes mais desfavorecidas. Além disso, é frequente os pais dos filhos que já gozam de uma situação privilegiada em relação aos demais, pagarem a explicadores para os ajudar a fazer os trabalhos de casa e a explicar-lhe as matérias que vão sendo leccionadas.
Ora, alguma coisa está errada numa escola que se apregoa de inclusiva, quando permite que os professores promovam a realização de trabalhos de casa para serem realizados fora do espaço escolar. Como é óbvio, os trabalhos de casa, efectuados nestas circunstâncias, criam uma situação de profunda desigualdade entre os alunos privilegiados, por natureza, e os alunos oriundos das classes mais desfavorecidas. Com efeito, quem ajuda, na mesma medida, os filhos dos pais analfabetos ou com a escolaridade básica que trabalham nas feiras, na pesca, nas obras e no campo e/ou que vivem nos bairros sociais, nas zonas marginalizadas ou isolados em lugares no fim do mundo?
Recordo que, nos anos 60/70, a escola era selectiva e os alunos passavam, apenas, 19 a 26 horas por semana na escola, repartidas por seis disciplinas no secundário e nove no básico. Hoje, pelo contrário, a escola é a tempo inteiro e tem o dever de ser inclusiva. Os alunos passam 35 a 40 horas (pelo menos) na escola, de manhã até noite, repartidas por uma chusma de disciplinas e de actividades a que se perde o conto. Ora, uma escola a tempo inteiro e com esta carga horária pressupõe, obrigatoriamente, a proibição absoluta de qualquer aluno dali sair com algum trabalho de casa para fazer ou alguma dúvida por esclarecer.
Acontece que a escola portuguesa é uma verdadeira pista de atletismo onde os filhos das classes privilegiadas partem não só com grande vantagem, em relação aos filhos das classes desfavorecidas, como correm numa pista sem quaisquer obstáculos, enquanto a pista onde correm os mais desfavorecidos está atulhada de obstáculos. Uma escolaridade obrigatória que promove os trabalhos de casa e a necessidade de explicações para tirar as dúvidas sobre as matérias leccionadas subverte, de forma hedionda, o espírito da escola democrática, inclusiva, integradora e a tempo inteiro. Uma escola com este perfil é uma escola segregacionista que, em vez de funcionar como elevador social, contribui para cavar cada vez mais o fosso entre as classes privilegiadas e as classes mais desfavorecidas.
Santana-Maia Leonardo - O Mirante de 25/3/2022