COMO FOI POSSÍVEL?
José Manuel Fernandes - in Público de 2/4/11
(...) Há mais de três anos, em Janeiro de 2008, numa altura em que o país bem- pensante ainda andava embeiçado pelo personagem, António Barreto, num artigo de opinião no PÚBLICO, escrevia: “Não sei se Sócrates é fascista. Não me parece, mas sinceramente, não sei. De qualquer modo, o importante não está aí. O que ele não suporta é a independência dos outros, das pessoas, das organizações, das empresas ou das instituições. Não tolera ser contrariado, nem admite que se pense de modo diferente daquele que organizou com as suas poderosas agências de intoxicação a que chama de comunicação. No seu ideal de vida, todos seriam submetidos ao Regime Disciplinar da Função Pública, revisto e reforçado pelo seu Governo”. Em 2009, os portugueses tiraram-lhe a maioria absoluta, mas não aprendeu nada nem mudou o que quer que fosse na sua forma umbiguista e corrosiva de exercer o poder. (...)
O que se passou nos meses, anos, em Portugal tem sido trágico.
Houve mentira: mentira sobre o real estado do país; mentira sobre as nossas obrigações internacionais: mentira sobre os êxitos e fracassos; mentira sobre os objectivos políticos, económicos e orçamentais. Evoluiu-se de mentira em mentira, negando de forma persistente a realidade e insultando todos os que, mesmo timidamente, tentavam evitar o desastre.
Houve corrosão dos hábitos democráticos: pressionou-se o sistema judicial, quando não se interveio mesmo directamente; procurou-se limitar as liberdades; desvalorizou-se a ética; promoveu-se o chico-espertismo; levou-se o clientelismo a limites antes desconhecidos; menosprezou-se a importância das virtudes públicas; planeou-se tomar de assalto órgãos de informação; promoveu-se o lambe-botismo ao mesmo tempo que se perseguia e tentava isolar todos os eventuais discordantes.
Houve cegueira económica: gastou-se dinheiro no que era supérfluo mas alimentava os amigos; cortaram-se despesas de forma pontual e ineficaz por ausência de uma visão de conjunto; procurou dizer-se aos empresários onde deviam e onde não deviam investir, apoiaram-se os amigos e os que prestam vassalagem e fez a vida negra aos independentes e aos que não abdicaram da sua liberdade; fingiu-se que se mudavam algumas leis para que, no essencial, tudo ficasse na mesma.
Um dia se fará a história destes anos, e estou em crer que, quando tal for feito, os vindouros se interrogarão: mas como foi possível? Como pode Portugal cair em tais mãos e mostrar uma tal incapacidade de sacudir esse jogo asfixiante? (...)