OS "SEM-ABRIGO" DO ESTADO
Santana-Maia Leonardo - A Barca
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A ministra da Justiça, a propósito de uma notícia sensacionalista da condenação de um "sem-abrigo" numa multa de 250€ por furtar um polvo de um hipermercado, quer aproveitar a oportunidade para liberalizar, de vez, os pequenos furtos. Ou seja, à conta do alarido causado, pretende fazer passar uma medida que visa favorecer, mais uma vez, os eternos protegidos do Estado (as grandes superfícies e os traficantes de droga) e à custa do sacrifício dos verdadeiros "sem-abrigo": os pequenos comerciantes, os contribuintes, os idosos e a gente honrada de menores recursos.
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Em boa verdade, a liberalização anunciada dos pequenos furtos só aparentemente penaliza as grandes superfícies, uma vez que estas têm meios não só de suportar os custos com o reforço da segurança como também de os fazer repercutir nos preços dos produtos. Ou seja, quem vai pagar a factura do reforço da segurança nas grandes superfícies vão ser, obviamente, os consumidores.
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Além disso, as grandes superfícies ainda vão beneficiar com a inevitável falência do pequeno e médio comércio que esta medida vai necessariamente provocar. Com efeito, os pequenos e médios comerciantes, sem margem de manobra para poder pagar a segurança dos seus estabelecimentos, vão ficar à mercê dos marginais que lá se irão abastecer, em vagas sucessivas e a prestações: um leva um frango, outro uma alface, outro uma Coca-Cola, outro um melão, outro uma camisa, outro umas calças, outro uns atacadores, outro uns sapatos, outro um amaciador, etc. etc. Com a nova lei, todos os vadios vão passar a comer, a beber e a vestir-se de borla.
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Por outro lado, o reforço da segurança das grandes superfícies irá necessariamente deslocar a pequena criminalidade que sustenta os traficantes de droga não só para o pequeno comércio como para o assalto aos particulares mais indefesos.
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Veja-se, aliás, a similitude da filosofia subjacente a esta proposta com a da lei da droga onde também é a quantidade de droga transportada que distingue o consumidor do traficante. Aparentemente, a lei da droga também parece proteger o consumidor, quando, na verdade, apenas protege o traficante, na medida em que, por um lado, permite o consumo, essencial para que a sua actividade floresça, e, por outro, impede que os consumidores se auto-abasteçam ou concorram com eles.
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Não deixa, por isso, de ser revoltante assistir à forma como uma notícia foi manifestamente manipulada pelos agentes políticos com vista a caucionar uma lei absolutamente indigna. Como todos sabemos (e a ministra não pode deixar de saber), mesmo que o juiz e os polícias fossem tão diligentes e zelosos ao ponto de fazerem o “sem-abrigo” cumprir a pena, este sempre tinha a possibilidade de pedir a substituição da pena de multa por trabalho a favor da comunidade. E será que lhe fazia assim tanto mal trabalhar umas horas a favor da comunidade?
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Entendamo-nos: num furto, o que deve ser penalizado, em primeira linha, não é o prejuízo em si, mas a acção de furtar. O furto de uma carteira deve ser sempre penalizado, independentemente do dinheiro que tem lá dentro. Eu sei que isto é difícil de compreender no mundo materialista em que vivemos. Mas se queremos criar uma sociedade de valores, temos de ser absolutamente implacáveis com os pequenos furtos que, por serem passíveis de envolver e afectar um maior número de pessoas, designadamente os jovens, têm a faculdade, precisamente, de destruir, corromper e subverter moralmente os valores em que devia assentar uma sociedade saudável.
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Se queremos viver numa sociedade que respeite os bens alheios, os pequenos furtos têm de ter uma pena desproporcional ao seu valor. Nestes casos, ao contrário dos crimes mais graves, a prevenção geral deve-se sobrepor à prevenção especial. Ou seja, a pena tem de ser altamente dissuasora. E ao contrário do que pensa a senhora ministra e a maioria dos comentadores, o dinheiro gasto no combate aos pequenos focos de incêndio nunca foi um mau investimento. Prevenir para não ter, mais tarde, de remediar. É este o caminho. Como diz o povo, é de pequenino que se torce o pepino.