A CORRUPÇÃO NAS AUTARQUIAS (II)
Orlando Nascimento (Juiz e ex-inspector do extinto IGAL)
Exposição apresentada no dia 4/9/2012, no ICS da Universidade de Lisboa,
no âmbito de uma iniciativa da Transparêcia e Integridade (TIAC).
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2. AS ÁREAS DE RISCO.
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São várias as áreas de risco de corrupção no âmbito das autarquias locais, como seria de esperar, mas aqui têm uma particularidade que lhes é dada pela proximidade e coesão entre elas.
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Trata-se de um pequeno governo e de um conjunto de pessoas, inseridas como sub grupo, de entre os cidadãos locais (eleitores) que, primeiramente se mantêm como sub grupo, em segundo lugar tratam dos seus interesses individuais e por último interagem com os eleitores em função das duas primeiras proposições.
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Claro que há áreas de maior risco, em geral com duas características, que são a sua aptidão por gerar dinheiro fácil e rápido e a maior dificuldade em detetar os ilícitos nelas praticados.
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A área da construção civil tem sido uma delas [1].
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2. 1. A área da construção civil.
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Aqui, a corrupção começa com a definição das áreas com aptidão construtiva pelos instrumentos, genericamente, designados como de gestão territorial, de que destaco os Planos Diretores Municipais (PDM), em cuja elaboração já entram todos os agentes que, posteriormente, vão ter intervenção em atos concretos de licenciamento, entre eleitos locais, funcionários autárquicos que também exercem atividades privadas e agentes privados com relações privilegiadas com uns e outros (nos seus empreendimentos privados).
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Pode parecer ideia preconcebida a afirmação de que tais instrumentos têm muitas vezes na base interesses, que não públicos, e que por isso têm atos de corrupção associados, mas o certo é que, analisados, as mais das vezes não se encontram explicações racionais, de interesse público, para as opções tomadas nem para os atos de transação de imóveis que os precedem.
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Publicado o instrumento de gestão territorial a corrupção pode aparecer depois em cada um dos concretos atos subsequentes, até o imóvel ser colocado no mercado, ou seja, desde o loteamento (e muitas vezes desde o pedido de informação prévia), até à concessão de licença de utilização.
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Nesta área, que faz parte das atribuições dos municípios e da competência dos seus órgãos, estão reunidas numa mesma entidade:
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- O poder legislativo (conceber e aprovar os instrumentos de ordenamento territorial);
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- O poder executivo (aplicar esses instrumentos aos pedidos de licenciamento apresentados pelos cidadãos);
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- O poder fiscalizador (fiscalizar os atos de licenciamento e a prática dos atos licenciados); e ainda
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- Um quarto e anómalo poder, que é o de alterar o instrumento legislativo se o mesmo não for cumprido e se vierem a ser detetados ilícitos, no exercício dos poder executivo e fiscalizador ou em atos de fiscalização externa.
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A corrupção nesta área move-se entre o dificultar e o facilitar, entre o não andar com o processo e esquecer a taxa, entre aqueles a que se aplica a lei e os amigos para quem a mesma não existe.
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O resultado é conhecido de todos; a corrupção apropriou-se, ela mesmo, de grande parte do preço especulativo praticado na construção.
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2.2.A área do recrutamento de trabalhadores
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A seguir à área da construção e interagindo com ela destaco a área do recrutamento de trabalhadores[2].
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Tratando-se de entidades públicas, a contratação de trabalhadores terá de ser feita por concurso público.
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Todavia, sendo conhecida a apetência dos portugueses por este tipo de emprego, vários são os expedientes que, com muita frequência, subvertem as regras de concurso, em ordem a que seja contratada a pessoa pretendida pelo grupo de poder (eleitos e funcionários)[3], sem grandes consequências associadas a tais ilícitos, ainda que descobertos, porque a ilicitude administrativa é, geralmente, ao nível da anulabilidade, o que torna difícil a perseguição do ilícito praticado uma vez que o ilícito tem de ser invocado pelo interessado, num curto espaço de tempo e em tribunal.
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Essa ilicitude surge inúmeras vezes logo na nomeação do júri, como acontece quando o presidente da câmara preside ao júri que coloca em primeiro lugar a filha do vice-presidente e este por sua vez, preside ao júri que coloca em primeiro lugar a filha do presidente, como acontece quando o presidente nomeia um familiar próximo para presidir ao júri do concurso em que é admitida a própria filha e como acontece quando o vice-presidente faz a mesma coisa.
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A mesma ilicitude prolonga-se depois, pela exigência, muitas vezes fora dos requisitos publicados para concorrer, de habilitações ou características dos candidatos que são, afinal, as características do candidato a que se destina o lugar, como acontece quando se exige uma licenciatura especifica em educação física para uma função de serviço social, e por essa via se admite um familiar do vice-presidente, excluindo-se os outros candidatos, como acontece quando se exige uma especifica licenciatura em história da arte, admitindo-se individuo com essa licenciatura, quando havia uma dúzia de licenciaturas com tanta ou mais aptidão para as funções a desempenhar.
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São os concursos conhecidos como trazendo a fotografia do candidato a admitir e cujo destino deveria ser sempre a respetiva participação criminal, porque de crime, e não de mero ilícito administrativo, se trata.
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Em todos estes casos, independentemente da violação mais ou menos visível da lei ordinária, o que está em causa com o favorecimento evidente do candidato privilegiado (escolhido), é a violação direta do princípio constitucional da igualdade, na sua vertente de igualdade de acesso ao emprego público (art.ºs 13.º e 47.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa).
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Realço ainda que tais atos, em si atos de corrupção, constituem também atos preparatórios de outros atos de corrupção posteriores, porque um trabalhador admitido por esta via muito rapidamente se verá na contingência de retribuir o favor, praticando ele próprio, outros atos de corrupção.
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Estes e outros atos ilícitos[4], que parecem menores, acabam por contribuir para a blindagem de certas autarquias à investigação criminal, dando lugar à situação que todos conhecemos.
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Sabemos que há crimes de corrupção, mas esta não é denunciada e muito menos julgada e condenada.
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2.3. A acumulação de funções por trabalhadores autárquicos.
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Tratarei apenas da acumulação de atividades privadas com o exercício do emprego público por parte de trabalhadores das autarquias.
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As situações de acumulação de trabalho público por parte desses trabalhadores (por ex. na autarquia, numa empresa municipal, intermunicipal ou numa associação intermunicipal) ou de acumulação de cargos públicos e exercício de atividades privadas por eleitos locais, afiguram-se residuais, de pouca relevância em matéria de corrupção, o que não quer dizer que não se verifiquem.
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Os art.ºs 28.º a 30.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, estabelecem as condições/pressupostos em que um trabalhador autárquico pode ser autorizado a exercer atividades privadas.
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Posto é que as mesmas sejam cumpridas, o que em demasiados casos não acontece, seja por se tratar de situações que se arrastam há muito, conferindo uma aparência de direito a estar naquela situação, quer por se tratar de um facilitismo que capitaliza futura retribuição dessa mesma condescendência.
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Como sabemos, ninguém tem o dom da ubiquidade e as energias de um trabalhador autárquico, como de qualquer trabalhador, não são inesgotáveis. Se um destes trabalhadores exerce atividades privadas, podemos, com segurança, afirmar que haverá prejuízo para a sua atividade autárquica.
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Esse prejuízo será exponenciado pela ausência de fiscalização efetiva, por parte da entidade empregadora autárquica, sobre se a situação de acumulação se traduz, ou não, num prejuízo do interesse público, por falta ou insuficiência de um controlo de assiduidade, de cumprimento do tempo de trabalho e de ausência de critérios de medição do trabalho efetivamente prestado no âmbito do vínculo de trabalho autárquico.
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Mas a situação é ainda mais grave do que isso e nela vislumbro os seguintes riscos, com relevância na área da corrupção, quanto a atos autárquicos:
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- Existência de uma indefinição da linha de separação entre o que é função pública autárquica e o que é atividade privada, fazendo com que a atividade pública autárquica do agente apareça como um facilitador da sua atividade privada;
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- Coexistência de situações de acumulação de funções públicas e atividades privadas com a alegação de falta de meios humanos por parte da autarquia, com o consequente atraso na execução das respetivas tarefas;
- Coexistência de situações de acumulação de funções públicas e atividades privadas com o pagamento de trabalho extraordinário, nos limites legais, fora além desses limites e por vezes sem ser prestado;
- Confusão para o cidadão comum, que tem dificuldade em distinguir quando é que o funcionário autárquico se apresenta como agente autárquico ou como um particular no exercício da sua atividade profissional privada:
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- Prejuízo para a liberdade de acesso às atividades privadas acumuladas uma vez que o trabalhador autárquico atua em situação de privilégio perante outros profissionais do mesmo setor, os quais exercendo apenas a sua atividade privada, não dispõem das ligações no interior da autarquia licenciadora que, em casos extremos permitirão o agenciamento de clientes e valores, em prejuízo das atividades económicas dos agentes privados.
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Todos conhecemos a face visível destes riscos, águas turvas que, ao contrário do que acontece na atividade piscatória, também propiciam a corrupção mas dificultam a “captura” dos seus agentes.
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2.4. Os subsídios.
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Prosaicamente falando, poder que se preze tem de dar qualquer coisa, obviamente que retira a outros.
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A importância da questão, na área das autarquias, está mais em retirar a outros e a outros fins do que em dar, que sempre se aceitaria, assim chegasse para todos.
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Atenta a finitude dos recursos e dinheiros das autarquias, a corrupção, nesta área, é suscetível de fazer um autêntico cerco ao dinheiro público, nem sequer gerado na autarquia, que não sai do grupo instalado, deixando todos os outros de fora, com prejuízo dos interesses da comunidade local e nacional.
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É indiscutível que as autarquias podem utilizar dinheiros públicos, que lhe são confiados para a prossecução das suas atribuições, atribuindo subsídios, nas seguintes três condições:
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a) O fim a que o dinheiro se destina deve estar compreendido nas atribuições das autarquias locais;
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b) O dinheiro deve ser utilizado para esse fim;
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c) A autarquia concedente deverá verificar essa concreta utilização.
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O risco de inobservância dessas condições está, mais uma vez, na utilização de bens públicos para satisfazer interesses privados, quer individuais, quer de grupo e quer de natureza económica (contratos, empregos), quer de mera perpetuação no poder (eletivo e para-eletivo[5]), uma e outra imbricadas com a captura de votos, que ambas permitirão e que, em ato de eleições, fará a diferença entre ganhar e perder.
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Em conexão e na área territorial das autarquias locais, municípios e freguesias, existe uma multiplicidade de entidades, comummente reunidas sob a designação de IPSS (instituições particulares de solidariedade social), que usualmente delas recebem subsídios e que também recebem subsídios, diretamente da Administração Central do Estado, nelas se compreendendo, a título de exemplo:
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- Associações de bombeiros;
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- Misericórdias;
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- Clubes de futebol;
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- Lares;
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- Filarmónicas;
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- Outras entidades com fins recreativos, culturais ou de solidariedade.
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Atenta a relação de dependência que, muitas vezes, se gera em relação à autarquia onde se localizam, existe o perigo, muitas vezes concretizado, de os respetivos órgãos dirigentes se encontrarem na mesma área de poder do grupo de poder na autarquia, conferindo mais Presidentes, Diretores, Comandantes e demais cargos honoríficos, mas com vencimento a condizer.
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Três são os principais riscos associados a esta interdependência.
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Em primeiro lugar, a subsídio-dependência que coloca tais entidades na dependência das subvenções das autarquias:
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Em segundo lugar, a extensão de poder das autarquias que além dos órgãos destas passam também a ocupar os órgãos dirigentes dessas entidades.
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E em terceiro lugar, o modo de agir destas entidades que, muitas vezes, passa a ser ditado, pela perpetuação, própria e do grupo, no poder.
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São estes três riscos que, vistos do exterior, nos permitem muitas vezes falar de cerco ao dinheiro público, na dupla vertente de que só beneficia o grupo onde circula, dele sendo excluído todos os outros cidadãos.
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Uma e outra destas consequências têm contribuído, ao nível das autarquias, para uma autêntica asfixia da iniciativa e da economia privadas, atenta a impossibilidade de, fora do circuito do dinheiro público, encontrar qualquer atividade privada que possa gerar proventos que se assemelhem aos que fluem nesse circuito.
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Qualquer iniciativa privada terá de se adaptar a esta realidade, o que também acaba por gerar riscos de corrupção na contratação por parte de tais entidades.
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Também esta acaba por operar dentro do mesmo grupo, com exclusão dos restantes, uma vez que as empresas que beneficiam desta contratação são usualmente do grupo.
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Daqui a importância, a nosso ver, da problemática do financiamento dos partidos, ao nível local, a exigir a publicitação dos militantes e órgãos dos partidos.
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Saber quem é quem, para se saber quem beneficia quem, para se saber se o dinheiro público é dispendido em proveito público ou particular.
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Uma autêntica asfixia que tem encontrado outras saídas, também elas desviantes, de dinheiros públicos.
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2.5. A proliferação de entidades.
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Desde alguns anos a esta parte, as autarquias portuguesas enveredaram pela criação de entidades terceiras para o exercício de competências próprias dos seus órgãos, sem que a tais atos tenham estado presentes noções básicas como as de necessidade, produtividade e sustentabilidade dessas entidades.
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Fizeram-no em violação de um velho principio de direto administrativo, segundo o qual as entidades públicas só podem praticar os atos que a lei lhes permite, ao contrário do que acontece com as entidades privadas, que podem praticar todos os atos que lhes não sejam vedados por lei, e fizeram-no, também, com a condescendência de alguns órgãos da administração central do estado ou dos seus agentes, que isso toleraram.
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Estão nesta situação, desde logo as empresas municipais, entidades saídas da criatividade que só o dispêndio de dinheiros públicos sem controlo permite e criadas antes de mais para ampliar os benefícios de estar no poder, entre eles mais cargos públicos, não eletivos, com remuneração e mordomias a condizer (ostentação de veículos e uso de cartões de crédito), mais empregos públicos sem concurso, maior endividamento e maior possibilidade de fuga aos órgãos de controlo, em especial, o Tribunal de Contas[6].
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Numa segunda fase, estas empresas municipais transmutam-se em entidades meramente participadas pelo município, permitindo também a passagem de bens do domínio público para o domínio privado, claro está, dentro do mesmo grupo, porque se mantém o propósito inicial de cerco ao dinheiro público.
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Na mesma linha se insere a criação de polícias municipais, quase sempre em sobreposição ou, pelo menos com difícil distinção de funções com a PSP e a GNR, e a criação de bombeiros municipais, muitas vezes em concorrência com associações de bombeiros voluntários, pré-existentes.
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Para além destas (empresas municipais, policias municipais, bombeiros municipais) surgiu também uma multiplicidade de outras entidades, estas já na órbita exterior às autarquias, que envolvem associações intermunicipais, empresas intermunicipais e uma espécie de interface entre as autarquias e a administração central do Estado, que são as concessões e os contratos de parcerias público privadas, entrelaçadas de tal modo que, não se sabendo quem é quem, onde acabam umas e começam outras, se sabe apenas que proporcionam uma franca saída de dinheiros públicos em beneficio de interesses privados ou de interesse cuja classificação se desconhece.
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Destaco aqui os setores afins da água, lixo e águas residuais, que se apresentam na fatura do cidadão comum com as três correspondentes taxas, que muitas vezes absorvem ainda dinheiros diretamente dos orçamentos autárquicos[7] e que, como se isso não bastasse, ainda surgem no horizonte com ameaças de privatização e com o costumeiro aumento de preço, ditado pelo “mercado”. (continua)
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[1] Prefiro chamar-lhe assim, área da construção civil, em vez de usar o termo comum de urbanismo, pela maior identificação do que está em causa, uma vez que este segundo termo aponta, preferencialmente, para licenciamento e seria redutor limitar a corrupção a esta etapa do processo.
[2]Como já referi, esta interação é a característica que torna a corrupção na área das autarquias uma especialidade em face da corrupção no restante setor público.
[3] Todos sabemos que se trata de realidades diferentes, mas o certo é que alguns eleitos estão há tanto tempo no cargo que se comportam como se fossem funcionários e os funcionários têm tanto poder que se comportam como se fossem eleitos. Se a esta realidade juntarmos o cimento que é o desejo de permanência de uns (no cargo eletivo) e de outros (no seu vínculo laboral) aportamos facilmente a esta realidade de “grupo”.
[4] Acumulação com atividades privadas, uso de veículos públicos como próprios, pagamento de trabalho extraordinário não prestado, promoção de trabalhadores etc.
[5] Refiro-me ao poder que é, ele próprio, depende do poder dos eleitos pela canalização de dinheiros públicos a seu favor.
[6] Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2006, de 29 de agosto à Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas (Lei n.º 98/97, de 26 de agosto) tais entidades ficaram inequivocamente sob alçada da fiscalização do Tribunal de Contas
[7] Aos elevados preços destes serviços básicos começam a ser associadas “tarifas sociais”, as quais, a par do que já acontece ao nível da habitação social e outras prestações sociais, independentemente da sua relevância social, em muito podem contribuir para coartar a liberdade de voto do cidadão, empobrecendo a democracia.