Grécia: a revolta democrática europeia
Álvaro Vasconcelos - Público de 23-2-2015
A revolta democrática grega pode ser o sobressalto cidadão de que a Europa tanto precisa; mas também pode ser uma etapa de um processo mais amplo, que pode levar não ao fim do euro, mas, muito mais grave, à fragmentação europeia. Se tivéssemos dúvidas de que a desintegração é hoje uma tendência global, bastava olhar para a vizinhança leste e sul da União.
O Eurogrupo adiou a decisão sobre as propostas da Grécia, mas, como se viu, será impossível que a Grécia, sozinha, consiga travar o desastre europeu. Em vez do apoio dos que mais têm a ganhar com as suas propostas, congregou a oposição de Portugal e da Espanha e a tibieza da França.
A lamentável declaração do ministro das Finanças alemão, de que o Syriza “vai ter muita dificuldade em explicar aos seus eleitores o acordo", é uma provocação incompatível com qualquer negociação séria. Melhor fariam os dirigentes europeus se aproveitassem este “adiamento” para reflectirem.
Devem, antes de tudo, reflectir porque têm medo dos cidadãos e do seu voto. (...)
O que os gregos exprimem hoje é a opinião maioritária dos europeus — se a UE tivesse mecanismos democráticos para reflectir a opinião da maioria, imporia outra política. Este é o verdadeiro problema europeu — o défice democrático da União.
Mesmo assim, até à imposição de medidas de austeridade, foi possível, sem sobressaltos trágicos, avançar na integração europeia sem resolver a sua questão democrática. Hoje, já não parece possível. Os cidadãos apropriaram-se das questões europeias e já não aceitam passivamente as decisões tomadas em seu nome.
Guilherme d’Oliveira Martins tem afirmado que a construção europeia assenta numa dupla legitimidade, dos cidadãos e dos Estados. Esta assenta nos princípios da igualdade e da soberania partilhada, e foi enfraquecida pela forma como foram tratados os países da Europa do Sul, nomeadamente a Grécia e Portugal, colocados sob a tutela da troika. (...)
Haverá alternativa à desintegração? Para alguns, o caminho é o salto na integração financeira, mas traria um consequente agravamento do défice democrático. Outros pensam que será o salto federal, um novo tratado que desse verdadeiro poder ao Parlamento Europeu, dissolvesse o Conselho e criasse um Senado representativo dos Estados — cenário desejável, mas nada provável.
Eu ficaria feliz, por enquanto, com algo mais modesto: sobreviver, tudo fazer para preservar a Comunidade Europeia (designação que prefiro à de União). Ouvir os que dizem que a política de austeridade não resolve os problemas económicos e financeiros da Europa, discutir à escala da União essa alternativa.
É preciso agora reabrir o debate sobre o futuro da Europa, sem tabus, nem mesmo o dos critérios do euro. As eleições em vários países da União, e sobretudo na Espanha, podem facilitar esse debate.
Os dirigentes europeus fogem ao debate das reformas desde o fracasso do Tratado Constitucional, mas os cidadãos contestam claramente essa fuga e é fundamental ter noção de que é melhor que a União seja, embora imperfeita, o resultado da vontade da maioria dos europeus do que ser coisa nenhuma, desintegrada pelos egoísmos dos seu dirigentes e os nacionalismos identitários que a corroem.
A revolta democrática que começou na Grécia ainda é a melhor esperança para o futuro dos europeus e da sua União.