Súmula Liberal
Gonçalo Almeida Ribeiro - Observador de 23-12-2014
Em entrevista concedida ao Público, Carlos Alberto Amorim (CAA) decidiu “revelar” que já não é um liberal, porque terá descoberto, entre a crise financeira e o caso BES, que há uma contradição insanável entre a “natureza humana” e o “liberalismo económico”. “O agente económico”, diz o entrevistado, “deve ter [sic] regras fortes e devem existir instituições que forcem [sic] a sua aplicação”. (...)
As palavras de CAA são interessantes por razões objectivas: pelo que dizem e não por quem as diz. Constituem uma oportunidade de ouro para desfazer vários equívocos antigos e comuns, na cultura pública portuguesa, acerca do pensamento liberal.
(a) Se há doutrina política moderna que parte de um preconceito relativamente pessimista da “natureza humana”, ela é o liberalismo. Nas palavras de Kant ― e para evitar o inevitável Hobbes ― “do lenho tão retorcido de que a humanidade é feita nada de inteiramente direito se pode fazer”.
(b) A liberdade advogada pelo liberalismo não é uma liberdade anárquica mas uma liberdade regulada por instituições fortes, entre as quais se destaca o Estado. O liberalismo não se confunde com o anarquismo, nas múltiplas encarnações que vão do extremo sindical ao capitalista. A necessidade de um Estado forte, capaz de manter a paz social e de assegurar a justiça, é uma dos compromissos tradicionais da teoria política liberal.
(c) A “força” das instituições, designadamente políticas, não se mede pela extensão do seu âmbito de actividade mas pela sua capacidade de preencherem as finalidades que as justificam. Um Estado arbitrariamente grande tenderá a ser débil, tal como uma pessoa incautamente pesada tenderá a ser pouco saudável.
(d) Há diferenças assinaláveis, para não dizer astronómicas, entre o liberalismo clássico, aliás saturado de elementos republicanos, de Smith, Kant, Mill, Tocqueville, Constant e Humboldt e o denominado neoliberalismo de Hayek, Friedman ou Nozick. (...) Entre uns e outros há um amplo espaço de acolhimento de posições intermédias, como as de um Popper ou de um Aron, para citar dois autores conhecidos entre nós. (...)
(f) O liberalismo não se confunde com a apologia incondicional do mercado, nem sequer aproximadamente. Identifica-se com a defesa da liberdade e da responsabilidade individuais. Muito antes de ser “económico”, o liberalismo é um ideário axiológico ou ético. A associação do pensamento liberal a determinadas instituições, nomeadamente o mercado, é contingente: ela depende da congruência entre estas e os valores que estão na base do edifício doutrinário. (...)
(h) A garantia da separação entre o poder político e os interesses económicos é uma preocupação central do liberalismo. Não há nada de surpreendente, do ponto de vista liberal, em casos de promiscuidade entre o Estado e negócios protegidos da concorrência, nomeadamente externa. É justamente por descrer na bondade natural dos homens que o liberalismo não confia no poder económico; a grande virtude da concorrência é que neutraliza a propensão natural deste para colonizar as instituições e explorar as pessoas. (...)
O liberalismo tem numerosas debilidades, algumas das quais possivelmente fatais. O mero facto de se traduzir num «ismo» cheio de pretensões homogeneizadoras pode torná-lo imprestável no domínio mundano da política. Esse é, de resto, um problema de toda a filosofia política, essa nobre tentativa de unir o que a realidade tende a separar de forma implacável. (...)